sexta-feira, 1 de maio de 2020

Semana de 17 a 21/12/18 -


Roteiro  de atividades PIBID GEOGRAFIA CFP UFCG
Período: dezembro 
DEZEMBRO:
1-      TEXTO: A CLASSE MÉDIA NO ESPELHO: AUTOR: JESSÉ DE SOUZA –  LEITURA E FAZER RESUMO DE CADA CAPÍTULO – enviar por e-mail e colocar impresso no Portfólio - 
        OBS.: TEXTO ENVIADO PELO SAPP.







Ler capítulos e fazer fichamentos:
  • Introdução

  • A MORALIDADE DA CLASSE MÉDIA

  • A classe média e a construção do indivíduo moderno
  • A invenção histórica do “ser humano sensível”
  • Aprendizado moral e justificação de privilégios

  • A CONSTRUÇÃO DA CLASSE MÉDIA BRASILEIRA
  • A gênese da classe média brasileira
  • O campo na cidade
  • O advento do capitalismo industrial
  • A construção dos projetos nacionais: um mais inclusivo e o outro excludente
  • A oposição entre mercado e Estado como expressão da luta de classes e a
  • classe média como fiel da balança
  • O golpe de 2016 e suas precondições: o capitalismo financeiro e o papel das  classes médias


SOBRE LEITURAS REALIZADAS:
TEXTOS REFERENTES A ATIVIDADES DO MÊS DE DEZEMBRO DE 2018 E JANEIRO 2019-PIBID

ATIVIDADE DE DEZEMBRO


SOUZA, Jessé. A classe média no espelho: Sua história, seus sonhos e ilusões, sua realidade. [recurso eletrônico], Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2018.


A MORALIDADE DA CLASSE MÉDIA
“O que será dito acerca da classe média neste livro, o leitor ou a leitora muito provavelmente pertencente a esta classe social – não ouviu nem leu em nenhum outro lugar” (P.7).
“Estou convencido de que tudo pode ser explicado, até mesmo os assuntos mais complicados, de forma clara e acessível. É o que pretendo fazer aqui, sem banalizar temas complexos nem ceder a superficialidades” (p.7).
“[...] o grande obstáculo para se alcançar um conhecimento efetivo, emancipador e autônomo está não somente na maior ou menor clareza das ideias, mas sim no medo diante da verdade” (p.8).
“Nas redes sociais costumamos nos proteger dos conteúdos contrários ao que acreditamos e, nos livros, só buscamos aquilo que confirma as nossas convicções. A covardia e a mentira são falsas aliadas de todos nós e excluem tudo o que há de generoso e belo na natureza humana” (p.8).
“[...] teremos de desconstruir as mentiras, pretensamente científicas, que nos contaram a vida toda” (p.9).
“Tais mentiras são de dois tipos. No primeiro, com o intuito de sermos mais domináveis, somos induzidos a nos ver como homens e mulheres excepcionalmente capacitados. [...] Segundo ele, somos “indivíduos” autônomos e livres, que vivem num mundo transparente e claro” (p.9).
“A falsidade dessa ideia [...] ela estimula nosso narcisismo infantil, ou seja, o desejo de nos vermos como fortes, inteligentes e poderosos. A felicidade está logo ali na esquina, e depende apenas de nossa vontade livre e autônoma para ser conquistada” (p.9).
“Amamos essas mentiras porque nos dão a impressão de que não somos limitados nem estamos submetidos a constrangimentos e impossibilidades. Temos a impressão de que podemos tudo, basta querer” (p.9).
“Como pode existir classe social, se somos todos indivíduos livres, autônomos e poderosos? Admitir que pertencemos a uma classe social é reconhecer que somos “reduzidos” a alguma coisa.” (p.10).
 “Entre todas as classes sociais, a classe média – assim como a dos excluídos – é também a menos conhecida. [...]. Enquanto os excluídos são simplesmente invisibilizados e desprezados, a classe média representa um ideal desejável e de grande força simbólica” (p.10).
“A classe média está intimamente associada ao individualismo e à autonomia individual. E não existe valor mais alto no Ocidente do que a autonomia individual. Além disso, uma sociedade de classe média é percebida como igualitária e justa, conciliando os registros positivos do trabalho produtivo, da liberdade individual e da vida democrática” (p.10).
O economista Marcelo Neri, o pai da ideia de uma “nova classe média”, simplesmente deduziu a suposta nova classe a partir da renda média, como se uma classe social fosse construída apenas pela renda” (p.11)
O recurso à definição de classe social baseada na renda torna possível falar de classe social e manter completamente intocadas as mentiras sobre liberdade e autonomia” (p.11)
“A renda também ajuda a aprofundar a desigualdade, na medida em que as famílias de classe média podem comprar o tempo livre dos filhos apenas para o estudo. Nas classes populares, por outro lado, os filhos começam a trabalhar e estudar aos 12 ou 13 anos” (p.11-12).
“Por aí se explica a renda diferencial dos indivíduos da classe média em relação aos das classes populares. Ao tornar invisível a reprodução de privilégios, a pseudociência liberal se torna manipuladora, invertendo causas e efeitos” (p.12).
“Hoje em dia, o trabalhador precário não se considera pobre, mas de classe média. Os pobres são apenas os excluídos e marginalizados. A classe média real, por sua vez, se vê como ‘elite’, contribuindo para um autoengano fatal e de consequências terríveis para o destino da sociedade brasileira e da própria massa da classe média” (p.12).
“Num mundo onde se imagina existir apenas dinheiro e poder como forças determinantes do nosso comportamento estão convencidas de que é possível demonstrar cabalmente a fragilidade e a mentira dessa visão” (p. 13).
“Os indivíduos das diversas classes lutam tanto por monopolizar o acesso a coisas materiais – carros, viagens e apartamentos –, como pelo acesso a coisas imateriais e simbólicas – respeito, reconhecimento social e prestígio. As duas dimensões têm igual relevância e são indissociáveis” (p.15).
“A alta classe média é o verdadeiro representante, o real “capataz” que, por delegação, exerce a função de comando da sociedade em todos os níveis[...] Que esta classe muito bem paga, mas com origem e trajetória de classe típicas da classe média, se perceba como “elite” faz parte da ilusão objetiva que lhe permite defender tão bem os interesses dos seus patrões”(p. 16).
“Já a massa da classe média perfaz o que se costuma denominar classe média baixa ou média – ou ainda, pelos critérios aproximativos de renda, as chamadas classes A e B” (p.16).

A CONSTRUÇÃO DA CLASSE MÉDIA BRASILEIRA
Em todas as épocas e lugares, os seres humanos têm necessidades similares. Todos possuem uma ‘necessidade externa’ – por comida, proteção contra as intempéries e sobrevivência material –, e uma “necessidade interna” – de dotar de sentido a própria vida” (p.19).
“[...] a capacidade humana de autorreflexão e descoberta de novos sentidos para a vida pessoal e social sempre foi recalcada e mantida sob estrita vigilância. Essa capacidade humana é revolucionária e, quando deixada livre, tende a questionar o sentido da tradição e da reprodução impensada da vida” (p.20).
Há uma contradição óbvia entre as novas possibilidades históricas de acesso à educação e à informação, potencialmente favoráveis à difusão do pensamento reflexivo e autônomo, e, do outro lado, as forças mobilizadas para que isso jamais aconteça” (p.20).
“Para saber como chegamos a este ponto, nada melhor que revisitar as origens e a gênese histórica dessa saga do espírito humano. De início, a construção e a interpretação da necessidade interna são determinadas pela religião” (p.20).
“O surgimento da noção de uma individualidade que não só pensa o mundo a partir de si mesmo, como efetua ‘escolhas’ de acordo com sua capacidade de discernimento, é um produto da tradição judaico-cristã” (p.21).
“[...] Com o judaísmo, pela primeira vez os mandamentos da divindade são percebidos como demandas morais dirigidas à consciência individual dos fiéis, que ‘escolhem’, de acordo com sua consciência, seguir ou não a regra imposta pela divindade” (p.21).
“O cristianismo recebe e aprofunda o legado judaico. A mensagem de são Paulo rompe a divisão judaica entre eleitos e não eleitos e difunde a ideia de que todos são iguais e passíveis de salvação. Agora, a mensagem religiosa se estende potencialmente a toda a humanidade [...] Já se nota, então, a forma singular pela qual as ideias influenciam o comportamento prático das pessoas comuns” (p.22).
“As ideias morais e a eficácia prática dessa mensagem singular estão, portanto, intimamente relacionadas ao esforço cotidiano e incansável de instituições importantes. Essa é uma constatação fundamental para os fins deste livro” (p.22).
“Nosso objetivo é recuperar essa lembrança e, com ela, a capacidade reflexiva que os podres poderes, voluntariamente, nos fizeram esquecer com o intuito de melhor nos controlar” (p.23).
“[...] O que nos importa, portanto, é a eficácia social das ideias, que as torna fatores determinantes da existência cotidiana. Existem ideias que humilham, desempregam e oprimem, fingindo que fazem precisamente o oposto. São essas ideias que têm de ser denunciada”(p.23).
“A moralidade é a dimensão que ilumina e constrói uma prática concreta. E nós, como seres humanos, somos a resultante da ação de ideias que são, ao mesmo tempo, valores e nos orientam na condução cotidiana da vida” (p.24).
“O modo como avaliamos a nós mesmos e aos outros, a nossa percepção de algo como virtuoso ou como vil, só se explica com base nessa hierarquia moral ‘invisível’. Ainda que não seja refletida, tal hierarquia domina a produção de todas as nossas” (p.24).
“O liberalismo dominante nada de braçada nessas ilusões objetivas. Para os egos infantilizados e inflados, ele reforça a ideia de que cada indivíduo define sua vida, seu conceito de felicidade e seus próprios valores” (p.24).
“Esses inevitáveis “sentimentos morais”– como culpa, remorso, ressentimento, raiva ou inveja – comprovam que o “social” e sua força moral estão ‘dentro’ – e não apenas ‘fora’ – de nós, e precisamente por conta disso essa força é tão acentuada” (p.25).
“Antes, a noção de felicidade e virtude que dava sentido à vida acenava com a possibilidade de salvação no além-mundo” (p.25).
“Nesse processo histórico em que se deu a passagem da religiosidade à secularização do mundo, o fundamental é compreender como o sentido da vida pessoal e do mundo social deixa de depender da ‘salvação no além-mundo’ para se tornar ‘salvação neste mundo’” (p.26).
“Ainda que a religião continue sendo importante para muitos, as grandes questões individuais e sociais vão ser definidas, a partir de então, sem o recurso à linguagem e à semântica religiosa” (p.26).
“[...] Segundo, as transformações culturais do protestantismo afetaram os mais diversos âmbitos – entre os quais o econômico, o político e o cultural –, com reflexos nas sociedades ocidentais como um todo” (p.27).
“Hoje não precisamos que ninguém nos convença de nada. Simplesmente somos reprovados nos exames escolares se não formos disciplinados no estudo ou somos despedidos se não nos mostrarmos disciplinados no trabalho. Ou seja, o que antes o protestantismo defendia sob a forma de princípios religiosos hoje nos é imposto pela força das práticas, com seus prêmios e castigos, das instituições mais importantes em nossa vida” (p.27).
“É crucial, portanto, entender como essas ideias se tornam um imperativo prático do funcionamento corriqueiro das instituições, ou seja, como antigas ideias se tornam tijolo, cimento, exame de escola e contrato de trabalho” (p.27).
“A revolução de consciências protestante vira de ponta-cabeça o imaginário social. O trabalho produtivo e cotidiano torna-se o suporte tanto da autoestima como do reconhecimento e respeito social do indivíduo” (p.28).
“Se a fonte moral do protestantismo é religiosa e divina, a fonte moral do utilitarismo é secular e laica, guiada pela noção de bem comum” (p.29).
“Ser ‘racional’ passa ser definido pela capacidade de autocontrole e de disciplina das paixões e inclinações naturais do corpo, em nome de um objetivo externo ao indivíduo” (p.30).
“Os seres humanos, que antes buscavam a justificação de suas ações na mensagem religiosa, agora passam a se definir a partir de sua capacidade de autocontrole como um fim em si mesmo” (p.30).
“Se inicialmente apenas a burguesia, a caminho de se tornar a classe social dominante, apropriou-se do discurso do trabalho útil para o bem comum a fim de deslegitimar o discurso tradicional da nobreza, logo a situação muda. Também as classes trabalhadoras passam a exigir sua inclusão econômica e política, e pelas mesmas razões que a burguesia evocara contra a nobreza” (p.31).
“Essa luta se deu em etapas. O reconhecimento da contribuição dos trabalhadores abriu o caminho para a participação em igualdade de condições [...] o direito ao voto era reservado aos detentores de renda, ou seja, aos burgueses. Foi o paulatino reconhecimento da contribuição econômica da classe trabalhadora que levou à vitória do sufrágio universal nos principais países capitalistas” (p.31).
“[...] Uma vez que todos podem trabalhar, todos podem ser valorizados por sua contribuição à sociedade, e não apenas os filhos das famílias nobres que monopolizavam a ideia aristocrática de honra com base na linhagem de sangue” (P.31).
“Aí está a importância de uma compreensão adequada dessas hierarquias morais, que tendemos a naturalizar e achar inatas[...] E elas decorrem de fatos históricos, que explicam a origem e a causa de tudo o que valorizamos e consideramos digno de luta e defesa – como, por exemplo, a própria ideia de democracia e de direitos individuais universais” (p.31-32).
“Tudo o que existe são ‘coisas’, que podem ser compradas e tocadas com as mãos. O mundo simbólico em todas as suas dimensões permanece irrefletido, e apenas os desejos e as justificativas da existência cotidiana ocupam o espaço possível do pensamento” (p.32).
“Compreender o mundo em sua complexidade simbólica e moral não é, portanto, apenas um desafio intelectual. Antes de tudo, é um desafio emocional, pois rompe com certezas tranquilizadoras, baseadas na repetição de chavões e clichês” (p.33).
“Desta também depende o valor relativo que atribuímos aos outros, por exemplo, como pessoas a serem evitadas na rua ou que merecem apenas um contato superficial e breve, em contraposição àquelas com as quais forjamos amizades duradouras ou até casamentos” (P.33).

A INVENÇÃO HISTÓRICA DO “SER HUMANO SENSÍVEL”

Além de produtivo, todo ser humano “deve” ser, também, consciente dos sentimentos e emoções que o tornam diferente dos outros. Ser autêntico é ter a capacidade de conhecer a si mesmo e ter a coragem de ser o que se é” (p.34).
“Antes tidas como perigosas e incontroláveis, as paixões são renomeadas como sentimentos e elevadas a um patamar no qual unem, e não mais separam corpo e espírito. Com a revolução expressiva, os seres humanos se definem não só pelo trabalho que fazem, mas também pela autenticidade de sua vida sentimental” (p.34-35).
“[...]A vida ‘bem vivida’ deve ter o complemento de uma vida emocional e sentimental rica que é sempre, ou deve ser, única e intransferível” (p.35).
“Em decorrência das revoluções protestante e expressiva, todos os indivíduos de todas as classes sociais vão definir o êxito ou o fracasso relativos de suas vidas com base não apenas no âmbito do trabalho, mas também no âmbito afetivo” (P.35).
“[...] a necessidade interna, inerente a todos os seres humanos de todas as épocas, foi percebida por essas elites intelectuais como uma interpretação amesquinhada e superficial por se restringir apenas ao trabalho produtivo” (P.36).
Já a ética da autenticidade e do expressivismo defendem que o indivíduo e a vida humana são – ou devem ser – mais do que a reprodução de um animal que trabalha para sobreviver materialmente” (P.36).
“Em grande medida, formamos a nossa autoimagem em função da forma como os outros nos percebem. Por isso é crucial a dimensão simbólica e moral. Ela pode nos humilhar e anular nossa capacidade de ação no mundo ou pode nos fortalecer e nos tornar ativos e autoconfiantes” (P.37).
“O pensador alemão Max Weber argumentou que a noção de indivíduo no protestantismo ascético simboliza a ideia de um “instrumento divino”, visando a maior glória de Deus na terra. Por outro lado, a versão emotiva se ligaria à ideia do indivíduo que traria a divindade dentro de si, com algo “interior” ao sujeito” (P.38).
“[...] as ideias simbólicas e culturais, com sua história peculiar, constituem a base de nosso comportamento prático, quase sempre sem que tenhamos consciência disso. Aliás, quanto menor a consciência do público, tanto maior a eficácia manipulativa [...]” (p.40).
“Os mitos nacionais existem para tornar invisível essa realidade simbólica e distorcer a necessidade pública e privada de compreensão das questões existenciais e políticas” (p.40).
“A reconstrução da dimensão cultural e simbólica aqui proposta parte da desconstrução e crítica desses engodos manipulativos, de modo que possamos perceber a eficácia prática das ideias que determinam nosso comportamento. Sem distorcer o mundo social, as classes dirigentes não podem fazer o trabalho sujo de se apropriar da riqueza social” (P.40).
“É isso que permite que possamos aprender desde que nos interroguemos acerca das ideias que influenciam nosso comportamento real e cotidiano” (P.41).
“[...] O capitalismo não pode ser compreendido apenas por sua dimensão econômica, enquanto fluxo de capital e troca de mercadorias, mas também como uma dimensão simbólica, moral e cultural comum” (P.41).
“A própria noção de amor moderno, como base da família e de uma vida sentimental estável, foi criada pelo expressivismo e pelo romantismo do final do século XVIII. Ela está no cerne da ética da autenticidade. É aqui que a mulher, pela primeira vez, deixa de ser vista como ser humano de segunda classe e, portanto, de estar submetida aos homens e aos costumes [...]” (p.42).
“Assim, a própria ideia de que a mulher deve ser conquistada, e não simplesmente arrebatada com violência, é recente e fruto da revolução expressiva nas elites artísticas e intelectuais, um processo que tem início no século XVIII e demora a se impor para o resto da população. A necessidade da conquista amorosa [...] cria um novo mundo, o da ‘esfera erótica’, em parte independente das outras esferas da vida e com regras próprias” (p.42).
“Depois dessa invenção cultural e histórica, quer ela seja vivida como ilusão ou realidade, nenhum de nós deixa de sentir o aguilhão do desafio que nos é imposto: uma vida sem amor não passa de uma subvida” (p.43).
“Desde o século XVIII, essa revolução expressiva vem se expandindo paulatinamente para todas as classes e todo o mundo [...]Surge assim uma poderosa indústria para ensinar o que é e como se conquista a felicidade que vislumbramos no amor” (p.43).
“Não apenas a percepção do amor e da vida familiar sofreu uma mudança drástica por causa do expressivismo. A própria ideia de trabalho produtivo também mudou. No século XVIII começam as críticas ao trabalho igual e repetitivo, como sendo indigno da grandeza humana” (p.43).
“É então que o capitalismo se dá conta de que gerou seu maior inimigo. Não mais a União Soviética, tão produtivista quanto o próprio capitalismo, mas o inimigo em casa, os filhos que se revoltam contra o mundo bem-comportado, baseado na mesmice e na tradição acrítica representada pelas gerações mais velhas” (p.44).
“As ideias de trabalho com sentido e de vida amorosa feliz e completa se disseminaram para todas as classes sociais, mas é na classe média, como veremos nas trajetórias de vida na parte final deste livro, que vamos encontrá-las em sua maior diversidade, profundidade e força” (p.45).
“Em nenhuma classe social este dilema é mais acentuado do que na classe média. Afinal, ela é a classe do expressivismo e da ética da autenticidade, seja na esfera do trabalho, seja na esfera íntima das emoções e dos desejos” (p.46).
“Ela permite também desmascarar e denunciar os usos perversos do desconhecimento de um público indefeso, usos que promovem interpretações cuja única razão de ser é a legitimação de privilégios injustos [...] Perceber como o mundo social funciona de fato é o maior desafio para uma vida com sentido, autonomia e direção própria” (p.46).

APRENDIZADO MORAL E JUSTIFICAÇÃO DE PRIVILÉGIOS

 “[...] reconhecimento das fontes morais que nos guiam seja na vida pública seja no âmbito mais íntimo é, portanto, um passo decisivo para nossa autocompreensão. Como não costumamos ter consciência desses fatores morais, esse reconhecimento muda, de forma radical, o modo como percebemos a vida privada e pública” (p. 47).
“Ali onde o dinheiro parece mandar em tudo, como no Brasil e nos Estados Unidos, isso também foi resultado de luta política, dessa vez decidida, sem compromissos, pelas classes dominantes, ou seja, pelos proprietários que impõem sua moeda – o dinheiro – como supremo valor social” (p.47-48).
“Os donos do dinheiro e do poder não podem simplesmente dizer ao restante da sociedade: “Nosso intuito é deixar todos vocês, otários, sem propriedade e sem poder, apenas com a roupa do corpo, trabalhando nas condições mais favoráveis para mim.” Não é assim que acontece. Caso contrário, teríamos revolta e revolução” (p. 48).
“[...] vamos examinar o conflito entre, de um lado, a dimensão moral e instrumental e, de outro, a dignidade do produtor útil” (p. 50).
“A fonte moral de todo amor-próprio, prestígio social e reconhecimento individual – sem os quais ficamos doentes e somos apenas uma sombra de nós mesmos – passa a ser referida ao trabalho que todos podem realizar” (p. 50).
“[...] a dimensão instrumental, sua irmã siamesa, coloca-se de duas maneiras distintas. Primeiro aos poucos vai ficando evidente que nem todo trabalho tem o mesmo valor. A quantidade e o tipo específico de conhecimento incorporado pelo trabalhador vão criar, também nesta dimensão, distinções sociais” (p. 50-51).
“[...] na própria dimensão da dignidade do trabalho útil, potencialmente universalizável para todos que trabalham e contribuem para a vida social, passam a existir gradações e hierarquias conforme o tipo de trabalho e o tipo de desempenho” (p. 51).
“O ordenamento jurídico e formal que assegura a igualdade, ainda que imperfeito, tem como alicerce consensos valorativos construídos ao longo da história. Nele se articula um compromisso entre as classes sociais, segundo o qual todos os indivíduos de qualquer classe devem desfrutar de um nível mínimo de respeitabilidade – e de reconhecimento de suas necessidades sociais, econômicas e políticas” (p. 52).
“Nesses países mais avançados no sentido moral e político, a desigualdade entre classes superiores e classes populares se manifesta de forma mais clara por meio da distinção estética” (p. 52).
“[...] A classe do privilégio pode se reconhecer facilmente na rua ou num evento social, constituindo uma espécie distante e, sobretudo, superior de ser humano” (p. 53).
“As amizades, os casamentos – 99% das pessoas casam dentro de sua classe social –, os relacionamentos pessoais e de negócio, tudo será facilitado pela percepção imediata do compartilhamento de um mesmo estilo de vida, baseado num gosto comum” (p. 53).
“A classe média brasileira não se comove com a morte ou mesmo o massacre de milhares de pobres, os quais são vistos como “gente inferior”. Mas se comove muito com o drama humano de um único indivíduo de sua classe, quando é sequestrado ou morto” (p. 54).
“É assim que o mundo social se mantém desigual apesar da pretensão formal de igualdade jurídica entre as pessoas. É assim que o pertencimento de classe efetivamente atua em nosso cotidiano. E isso acontece em todas as atuais sociedades capitalistas, seja na periferia do sistema, como no México e no Brasil, seja no centro, como nos Estados Unidos e na França” (p. 54).
“Quando um privilegiado põe na mesa um vinho especial de 20 mil ou de 50 mil reais, não está apenas exibindo o seu dinheiro. O que lhe importa é provocar nos outros e em si mesmo a sensação de que possui bom gosto, percepção sofisticada e sensibilidade “inata” ” (p. 55).
“O decisivo aqui é constatar a forma pela qual se dá a legitimação e justificação dos privilégios injustos da classe média e da elite em detrimento das classes populares, seja dos trabalhadores, seja dos marginalizados. A “superioridade” das classes do privilégio positivo, herdada do berço, não precisa estar escrita na lei jurídica, pois está inscrita em nosso comportamento prático corriqueiro” (p. 56).
“Assim, o sonho de toda criança das classes marginalizadas é ter um tênis Nike ou um iPhone, produtos corriqueiros entre os filhos da classe média real. As classes subalternas já se percebem como inferiores por não terem acesso aos mesmos símbolos de status e de bom gosto” (p. 56).
“[...] é o conhecimento incorporado no próprio trabalhador que determina, em grande medida, a maior ou menor produtividade do trabalho” (p. 58).
“Ao contrário do escravismo, por exemplo, o capitalismo não explora a mera energia muscular do trabalhador, e sim o conhecimento incorporado que o capacita, por exemplo, a operar máquinas complexas” (p. 58).
“Ainda que o conhecimento da classe média real seja mais valorizado – em função de sua escassez e do tempo livre requerido para sua incorporação, um privilégio das classes médias que podem dispor do tempo livre dos filhos e de boas escolas [...]” (p. 59).
“Como o bom aproveitamento escolar exige pressupostos normalmente invisíveis – como atenção, foco, concentração, disciplina, autocontrole, [...], os filhos da classe média já entram como vencedores no sistema escolar, ao passo que os filhos da classe dos marginalizados [...] chegam como perdedores em tenra idade” (p. 59).
“A exploração econômica do trabalho barato permite à classe média não só “roubar” o tempo da “ralé de novos escravos” – ocupados nas funções repetitivas e desgastantes do serviço doméstico [...], como usá-lo depois em tarefas mais bem pagas em benefício próprio” (p. 60).
“Os privilégios de uma classe condenam a outra à precariedade eterna, já que não lhe sobra tempo para nada. Enquanto isso, a classe opressora tem cada vez mais oportunidades de avançar e obter conhecimento e riqueza” (p. 60).
“Com o tempo, o exercício da humilhação se torna prazeroso, multiplicando-se sob as formas da piada suja, do chiste aparentemente apenas de brincadeira, do insulto direto, do preconceito de classe e de raça e, não menos importante, do abuso” (p. 60-61).
“A classe média brasileira herda o abuso e o sadismo de seus avós, e um dos motivos para isso é que nossa inteligência cooptada e colonizada nem sequer percebe a escravidão como a nossa semente social mais importante” (p. 61).
“A inclusão dos humilhados sempre é uma decisão política e moral, e nunca consequência apenas do desenvolvimento econômico, como se comprova no Brasil. Entre nós, a elite e a classe média preferem ignorar essa situação secular e continuar explorando e humilhando os mais frágeis” (p. 61).
“A causa de todos os golpes de Estado, em especial o de 2016, nunca teve nada a ver com a corrupção. Por que apenas a suposta corrupção petista incomoda a classe média, e não a dos outros partidos, mesmo quando comprovada em gravações exibidas na TV? Alguém viu a classe média em massa nas ruas, protestando contra a corrupção de partidos de elite?” (p. 61).
“Um dos objetivos centrais deste livro será precisamente explicar o que incomoda de verdade a classe média. [...] Agora vamos demonstrar o que afasta a nossa das classes médias em países moral e politicamente mais desenvolvido” (p. 62).
“Para começar, a singularidade de cada país não se deve, como pensamos até hoje, a heranças malditas [...] Afinal, a tradição não se transmite pelo sangue, pelo ar nem por picada de mosquito. São instituições concretas – a família, a escola, o trabalho, etc. – que nos fazem o que somos” (p. 62).
“Todas as questões centrais do desenvolvimento econômico, político e social brasileiro têm origem nessa distância e nessa marginalização gigantesca, e nada têm a ver com as balelas e mentiras de patrimonialismo, jeitinho brasileiro e povo corrupto ou preguiçoso” (p. 62-63).

A CONSTRUÇÃO DA CLASSE MÉDIA BRASILEIRA
A GÊNESE DA CLASSE MÉDIA BRASILEIRA

“Como a instituição da escravidão e do escravismo é a base econômica do sistema capitalista mercantil colonial, os homens livres, apesar de seu número expressivo [...] não têm lugar no sistema produtivo principal” (p.65).
“Assim se constitui entre nós – como forma econômica, política e social – a figura do ‘agregad’o [...] o agregado vai formar a primeira classe intermediária entre proprietários e despossuídos [...] Vários dentre eles vão se juntar aos -escravos, abandonados pela ‘abolição’ meramente formal, e constituir uma das maiores classes sociais do Brasil moderno: a ralé estrutural de despossuídos e abandonados”(p.65-66).
“[...] o escritor Graciliano Ramos quem melhor tenha compreendido essa dinâmica social e seus reflexos nos indivíduos. O romance São Bernardo mostra, de forma magistral, o processo de desumanização que um agregado que se torna proprietário de terras tem que realizar num contexto marcado pelo arbítrio e a violência. O assassinato como meio de resolução de conflitos, o definhamento de toda dimensão afetiva e sentimental são o corolário do homem de sucesso nesse ambiente”(p.66).
“As formas mais comuns de agregado serão o tropeiro, o sitiante, o vendeiro e, acima de tudo, o ‘cabra’, o braço armado do patrão, disposto a matar ou morrer por ele” (p.66).
“Mas a ilusão de liberdade vale muito – na ausência de outra opção, resta a fantasia – e ainda permite aliviar o desgaste do arbítrio e da autoridade aberta” (p.67).
“O pressuposto do acordo de cavalheiros entre o senhor e o dependente é que escravo trabalha para ambos [...] Fundamental porque irá perdurar como o nó górdio das relações entre as classes no Brasil desde então: a preservação da distância social de todas as classes em relação aos escravos assegura um espaço de distinção social [...]” (p.67).
“Essa relação vai se perpetuar no Brasil dos séculos seguintes em relação aos abandonados e marginalizados, ou seja, os atuais descendentes dos ex-escravos de qualquer cor de pele, embora a maioria continue sendo negra, mesmo depois da abolição formal da escravidão [...]” (p.67).
“Este é um ponto crucial das relações de classe no Brasil: os escravos, e depois seus descendentes, formando um exército de humilhados e esquecidos de todas as cores, vão se tornar uma espécie de casta dos intocáveis, tal como na Índia. A função da casta inferior na Índia – os ‘intocáveis’, no sentido de que qualquer contato físico com eles contaminaria a pureza relativa das castas superiores [...]” (p.67).
“Essa situação se mantém ao longo do tempo como a característica mais relevante da sociedade brasileira e, mesmo quando esta se moderniza, vai marcar profundamente os estratos médios, o nosso tema neste livro [...]” (p.68).
“Ao contrário da colonização norte-americana, feita em grande medida por pequenos e médios proprietários de terra, no Brasil a colonização se deu por meio do latifúndio sem lei – na verdade, sua única lei é a do mais forte e do mais inescrupuloso –, que subordina e comanda toda a realidade social. Essa é a real e principal diferença entre a história social desses dois países [...]” (p.68).
“No caso brasileiro, sem a pressão de uma comunidade maior composta pelo conjunto de iguais em termos econômicos e sociais, o arbítrio e a violência aberta dos donos de terra e gente são o único critério que conta” (p.68).

“Essa é uma realidade que até hoje caracteriza as relações nas áreas rurais do Brasil, com o mesmo tipo de gente prestando-se a fazer o mesmo tipo de trabalho sujo. É na cidade que outra modalidade de trabalho sujo, o da dominação social urbana e despótica, vai assumir novas formas” (p.69).

O CAMPO NA CIDADE

“A mudança do campo para a cidade, que já se prenuncia com a passagem, em termos de dinamismo econômico, da agricultura de exportação para a mineração na segunda metade do século XVIII, ao contrário, já contempla inovações importantes para o nosso tema” (p.70).
“O processo de urbanização transforma a realidade material e simbólica das pessoas e cria necessidades que não existiam no meio rural [...] Mas isto só vai ocorrer no princípio do século XX e muito concentrado de início na cidade de São Paulo” (p.70).
“Mesmo assim, já com o advento da mineração e, sobretudo, com as duas novidades associadas à vinda da Família Real portuguesa ao Brasil em 1808 – a data de nascimento do Brasil moderno –, notam-se mudanças sociais de vulto na sociedade brasileira. Essas duas transformações são a abertura dos portos e a transplantação do aparato do Estado português de Lisboa para o Rio de Janeiro” (p.70-71).
“A abertura dos portos significou, na realidade, a introdução da lógica das trocas mercantis nas grandes cidades brasileiras, marcadamente no Rio de Janeiro, como capital do novo reino, mas também em Recife e Salvador” (p.71).
“[...] A vinda da Família Real, por sua vez, se deu com a transplantação de parte do Erário português e de milhares de funcionários e burocratas encarregados de refundar o novo Estado nos trópicos” (p.71).
“Chegam alemães da Bavária para produzir as primeiras cervejas brasileiras; franceses para vender roupas e badulaques para as jovens e senhoras; e chegam, sobretudo, ingleses, trazendo até as primeiras máquinas, viabilizando manufaturas e oficinas voltadas para o reparo e a produção de um sem-número de itens” (p.71).
“A chegada de uma nova burocracia real cria não só demandas de mercado, mas também aumenta a complexidade da sociedade como um todo. Bancos estatais abrem espaço para um adensamento da economia monetária e do fluxo de capitais e mercadorias” (p.72).
“Ainda que as mudanças não alcancem o interior, nas cidades litorâneas são evidentes as alterações no modo de vida. A influência europeizante passa a marcar o ambiente urbano, revolucionando tanto a vida produtiva e cotidiana quanto o gosto estético e os padrões de moralidade” (p.72).
“Afinal, o capitalismo não implica apenas a valorização do capital econômico. O próprio dinamismo da atividade econômica no capitalismo depende do aproveitamento sistemático da técnica e da ciência, ou seja, do conhecimento. É isso que torna o capitalismo dinâmico e produtivo” (p.73).
“A classe que vai se apropriar desse recurso fundamental, como base de sua reprodução social, é precisamente a classe média” (p.73).
“[...] O que o capitalismo explora no trabalhador é, antes de tudo, o conhecimento incorporado por ele, e não apenas sua energia muscular. É desse contexto que, mais tarde entre nós, vai sair uma das novas classes sociais resultantes do capitalismo já industrial: a classe trabalhadora” (p.74).
“Como grande parte dessa classe marginalizada será negra ou mestiça, a continuidade do preconceito contra o escravo vai se dar sobretudo nesse segmento das classes populares. Não só as camadas ‘superiores’, mas a própria classe trabalhadora, bem como a ‘massa’ da baixa classe média, vai procurar de todos os modos se afastar e se distinguir da ralé de novos escravos” (p.74).
“As duas grandes batalhas políticas desse período, a Abolição da escravatura eo advento da República, já são levadas a cabo em grande medida como uma luta pela hegemonia da opinião pública nos maiores centros urbanos” (p.76).
“Esse é um fio condutor fundamental, o da batalha das ideias que lutam pela hegemonia na sociedade, que vamos retomar adiante. Antes, temos que compreender a inflexão que a Abolição significou do ponto de vista social e econômico” (p.76).

O ADVENTO DO CAPITALISMO INDUSTRIAL

“A Abolição representa uma transição fundamental. Abre-se com a emancipação dos escravos [...] caminho para o desenvolvimento capitalista enquanto tal. O trabalho livre permite a formação de um mercado interno capitalista que antes só existia de modo incipiente nas cidades litorâneas” (p.77).
“O negro e seus descendentes vão se somar, então, aos esquecidos e humilhados de todas as cores e formar uma classe específica que se desenvolve no capitalismo da periferia: o que chamo de ‘ralé brasileira’ (p.78)”.
“[...] Os mecanismos simbólicos de distinção social são tão importantes quanto os estímulos econômicos. Por isso, qualquer ajuda a essa classe vai ser bloqueada pelas classes privilegiadas, como mostram os recorrentes golpes de Estado” (p.78).
“Ainda que as pessoas não sejam mais separadas pela cor da pele desde o berço para serem senhores ou escravos, elas são separadas por processos invisíveis que produzem efeitos semelhantes” (p.78).
“[...] esses excluídos e marginalizados podem  ser assassinados, por exemplo, sem que isso cause comoção pública. Ainda que a ralé seja a mais atingida por este mecanismo de desumanização, o mesmo ocorre, em gradações diferentes, com todas as classes populares que realizam trabalho semiqualificado, ou seja, com a maioria da população” (p.79).
“A herança da escravidão não irá contaminar apenas a ralé, negra e mestiça, mas todas as classes populares. E isto é decisivo para se entender a posição e atitude das frações da classe média em relação às classes populares. Assim, a gênese do capitalismo entre nós desde o início carrega seu segredo e sua mácula” (p.79-80).
“Os ex-escravos também continuam marginalizados, de forma aberta ou velada, como prestadores de serviços pessoais. As classes modernas do capitalismo [...] são formadas pelos recém-chegados imigrantes. A outra classe moderna do capitalismo, a classe média, apresenta uma composição de origem variada, com prevalência do componente nativo, sobretudo os filhos da alta classe média de profissionais liberais” (p.80)
“[...] é verdade que a passagem do artesanato para a manufatura, e daí para a grande produção industrial, não se reproduz no Brasil tal como no capitalismo clássico de outros países. Aqui o capitalismo se desenvolve entre 1890 e 1930, já à sombra do grande capital comercial e financeiro, constituído na esteira da valorização do café no mercado internacional” (p.81-82).
“Em condições favoráveis, teria sido possível uma direção própria da sociedade a partir das necessidades do capital industrial instalado. No entanto, desde essa época, o industrialismo brasileiro procura se acomodar com a elite agrária e comercial/financeira dominante” (p.82-83).
“Em todos os grandes embates políticos nos 100 anos seguintes, nota-se o peso dessa origem politicamente subordinada da fração industrial do capital. Em todos os golpes de Estado, como os de 1954 (frustrado em suas últimas consequências pelo suicídio de Vargas), de 1964 e de 2016, foi uma política de esquerda, realizada em nome do capital industrial, que redundou ao fim em união de toda a classe proprietária [...]” (p.83-84).
“Num país tão populoso quanto o Brasil, apenas o desenvolvimento industrial poderia proporcionar empregos mais qualificados e bem-remunerados e a formação de um mercado interno forte e dinâmico [...] Mas os custos sociais disso são elevadíssimos” (p.84).
“Uma industrialização mais autônoma e nacional permitiria uma articulação com as massas trabalhadoras, as quais também se beneficiariam com o processo[...]Entre nós, porém, a fragilidade e a visão míope da classe industrial levaram essa fração a sempre tomar o partido da classe proprietária enquanto tal, mesmo objetivamente contra seus interesses, sufocando assim qualquer veleidade de ascensão das classes populares” (p.84).
“Desde o início do século XX, quando começa a se formar esta constelação de classes, a alta classe média se alia às frações anti-industriais, representadas pela elite agrária e pelo capital comercial-financeiro exportador e importador” (p.85).
“Todavia, era na massa da baixa classe média e da incipiente classe operária que a inflação, decorrente das constantes emissões de moeda para pagar os empréstimos estrangeiros – uma vez que o governo não tinha força para tributar os latifundiários –, que a situação econômica se tornou premente” (p.86).
“A alta classe média e, em menor grau, a massa da baixa e média classe média têm interesse na manutenção da hierarquia do capitalismo que as privilegia como classes do trabalho não manual e relativamente mais prestigioso e valorizado. São as classes da educação e do conhecimento” (p.86).
“A capacidade de organização das classes populares e trabalhadoras sempre fora reprimida com violência e falta de escrúpulos pela elite dirigente [...] a elite nativa reagiu às primeiras manifestações de organização do protesto popular com as mesmas armas” (p.86).
“A primeira grande greve geral de trabalhadores de São Paulo, liderada por trabalhadores e trabalhadoras com passado anarco-sindicalista nos países de origem, a grande greve de 1917, terminou em banho de sangue e na traição de todos os acordos assinados por parte dos patrões” (p.86).
“[...] No entanto, logo depois da assinatura do acordo, publicado em vários jornais para garantir seu cumprimento, encerrando a greve afinal vitoriosa para os trabalhadores, os patrões promoveram uma feroz repressão e perseguição dos líderes do movimento” (p.87).
“Alguns são assassinados ou deportados, enquanto a maioria é mandada presa ao Amapá, onde grassava uma epidemia de malária, para morrerem sem cuidados. Essa era a forma como a elite lidava [...] com os movimentos populares e de trabalhadores” (p.87).
“A chamada Revolução de 30 é, portanto, o resultado de uma bem urdida articulação entre, de um lado, as elites subalternas ao arranjo agrário-comercial paulista e, de outro, os tenentes, como expressão militar do descontentamento difuso que grassava na massa da classe média que se formava sob o influxo do capitalismo industrial” (p.88).
“É interessante notar que a conjuntura de 1930 se manteve, em seus traços mais gerais, pelos quase 100 anos seguintes, o que ajuda a esclarecer os momentos históricos que chegaram ao ponto de ebulição em 1954, em 1964 e em 2016” (p.88).
“Na dimensão ideológica temos, também, a partir da década de 1930, a formação dos ideários e concepções de mundo de grande influência nas classes e nos indivíduos que até hoje demarcam o nosso horizonte mental. Cabe lembrar que o Brasil enquanto tal – como uma ideia totalizante e com um projeto coletivo articulado e inclusivo – simplesmente não existia antes de 1930” (p.89).
“A fragilidade relativa das classes populares, massacradas e reprimidas como sempre, impedia que pudessem elaborar intelectualmente uma interpretação alternativa e viável da sociedade” (p.90).
“Mais uma vez, na ciência e na política, a repetição é tão importante quanto na música: todo o nosso comportamento está baseado em ideias, quer saibamos disso ou não. E, se não sabemos, não há como nos defender dessas ideias que influem em nossos atos, por vezes até em sentido oposto aos nossos interesses” (p.90).
“Essa mesma década é marcada por intensa agitação na esfera intelectual e cultural, com esforços para dar conta desse novo desafio: pensar e interpretar o novo Brasil que então se delineava” (p.90).

A CONSTRUÇÃO DOS PROJETOS NACIONAIS: UM MAIS INCLUSIVO E O OUTRO EXCLUDENTE

“Afinal, que país era esse que estava sendo construído?” (p.91).
“[...] o divisor de águas para a sociedade brasileira desde então, vai ser a questão da inclusão ou da exclusão das classes populares no processo de desenvolvimento capitalista. Tudo o que importa gira em torno dessa escolha fundamental, que vai dividir a sociedade e os espíritos” (p.91).

“Os temas centrais – o desenvolvimento deve ser impulsionado pela indústria ou pela agricultura (a “vocação agrária”), o grau de maior ou menor inclusividade do sistema político – derivam dessa questão básica” (p.91-92).
“Míopes são aqueles que consideram apenas o racismo mais visível, em função da cor da pele, pois não conseguem perceber os outros racismos, que se manifestam de modo mais sutil e mais subliminar” (p.92).
“[...] Num contexto de racismo explícito, marcado pela concepção de branqueamento da população, o fato de reconhecer que o povo brasileiro é mestiço, e de ver isso como valor positivo, foi revolucionário” (p.93).
“Para a elite, pretos e mestiços, supostamente indolentes, deveriam desaparecer e dar lugar a brancos de origem europeia. Para uma elite que preferia – e ainda prefere – tornar invisível o povo brasileiro, dizer quem era realmente o povo e, ainda por cima, anunciar que isso não era nenhum problema foi obviamente um enorme avanço” (p.93).
“Vargas reconhece o potencial aglutinador dessa mensagem e ressalta o seu conteúdo inclusivo– do povo, da massa da baixa e média classe média e das classes populares que apoiavam seu governo [...] O governo Vargas passa, portanto, a celebrar a mestiçagem, o que é revolucionário para o espírito reacionário e abertamente racista da época” (p.93).
“Além disso, a sociedade brasileira não apenas se industrializava e se urbanizava. Esses dois elementos combinados introduziram também a ‘sociedade de massas’” (p.93).
“O futebol, antes restrito à elite, passa a ser reconhecido como esporte nacional e tem, nessa época, seu primeiro grande ídolo nacional em Leônidas da Silva, o ‘Diamante Negro’, um negro, portanto” (p.94).
“Diante disso, como reage a velha elite que comandava a República Velha [...] sem o poder de Estado e sem a hegemonia ideológica sobre a sociedade? De início, reage como sempre. Tenta a saída militar e fracassa” (p.94).
“O instrumento dessa elite do atraso será a Universidade de São Paulo, a USP, fruto de seu dinheiro e de seu prestígio, que vai se tornar o think tank do liberalismo ‘vira-lata’ brasileiro” (p.94).
“Aqui é o lugar para desfazer possíveis mal-entendidos. Quando situo em São
Paulo a matriz da “elite do atraso”, refiro-me à elite regional que, por sua força relativa, vai acabar comandando o país todo, tanto na dimensão material quanto na simbólica” (p.94).

“Dito isto, é inegável que a USP foi a ponta de lança de um esquema de poder elitista que resultou na elaboração da ideologia hegemônica do liberalismo vira-lata brasileiro” (p.95).
“Estamos aqui na dimensão do mito nacional, ou seja, de um conto de fadas para adultos com o intuito de explicar aos leigos como funciona a sociedade. É a luta pela conquista do mito nacional hegemônico que permite colonizar a cabeça da população como um todo em benefício de uma pequena elite” (p.95).
“A questão para a elite afastada do poder era, portanto, assegurar que a rebeldia da classe média nunca mais se manifestasse espontaneamente e sem controle, como se deu no apoio a Vargas” (p.96).
“A elite precisa da lealdade da classe média, pois esta é que representa os interesses da restrita elite de proprietários, seja no mercado, no Estado ou na esfera pública” (p.96).
“Por conta disso, a estratégia da elite em relação à classe média foi recorrer ao uso da violência simbólica, e não da violência material, como fazia no caso das classes populares. A violência simbólica é aquela que não parece violência, que se vende como convencimento, mas que, na verdade, retira a possibilidade de reflexão e, portanto, de qualquer autonomia da vontade” (p.96).
“Que ideias são essas tão eficazes e insidiosas que iludiram e ainda iludem tanta gente boa? Para compreendê-las precisamos examinar primeiro a ‘santíssima trindade’ do liberalismo vira-lata brasileiro, hoje hegemônico na direita e na esquerda. As figuras principais aqui são Sérgio Buarque de Holanda, o filósofo da santíssima trindade, posto que foi o criador das noções mais abstratas que estão hoje na cabeça de todo brasileiro, como personalismo, jeitinho, patrimonialismo, cordialidade, etc” (p.97).
“[...] As falcatruas e roubalheiras do capitalismo financeiro americano, comprovadas na crise de 2008 e que continuam até hoje – nos balanços mascarados de empresas, no engodo de clientes, na sonegação de impostos em escala planetária –, tudo isso foi certamente obra de um brasileiro cordial que inoculou o veneno da corrupção nessas almas tão honestas e puras” (p.98).
“O ponto de inflexão no desenvolvimento do capitalismo americano é marcado pela Guerra de Secessão (1861-1865). A formação de um capitalismo que passa do nível local para o âmbito nacional significa também um golpe fatal no capitalismo baseado nos pequenos e médios proprietários” (p.98).
“Por ter sido criado à sombra do Estado, o Brasil tradicional era elitista, corrupto e sem energia. [...] O inimigo de toda iniciativa é o Estado, que inocularia o vírus da desonestidade e da apatia na população” (p.100).
“As lutas por hegemonia ideológica costumam ser de longa duração. Envolvem um processo de amadurecimento de ideias e de sua articulação com interesses específicos. A luta da elite paulista por hegemonia é complexa e passou por várias fases, pois não é fácil a articulação de interesses herdados do passado [...] Há também o confronto com as classes populares, que iam se consolidando com o dinamismo do capitalismo paulista” (p.102).
“A questão aqui não tem a ver, e nunca teve, com a verdade. Como traço cultural brasileiro, a ideia de corrupção não passa de um instrumento para dominar e colonizar as pessoas, garantindo que a inferioridade seja moralizada. Quem é colocado numa posição moralmente inferior não pode se defender de seu algoz” (p.102).
“A partir daí, 99,9% dos brasileiros, sejam ou não intelectuais, vão identificar o grande problema brasileiro como sendo apenas a corrupção no Estado e na política. Não por acaso, ‘patrimonialismo’ é o termo predileto dos arautos da farsa da Lava Jato em conluio com a Rede Globo na manipulação do público” (p.102).
“Se o liberalismo vira-lata tem como função ocultar a rapina da elite de proprietários, no que se refere à alta classe média e a frações importantes da massa da classe média, o mito vira-lata permite legitimar os seus privilégios de classe como expressão de uma suposta superioridade moral inata” (p.103).
“Para a classe média, o tema da moralidade, que lhe permite se ver como mais virtuosa do que a elite e o povo, torna-se mais evidente em função da maior ou menor sensibilidade à questão da corrupção restrita ao Estado. Agora há boas razões para se odiar e desprezar o povo: afinal, é graças à suposta conivência deste que existem líderes populistas corruptos e inescrupulosos” (p.104).
“[...] Embora exista desigualdade em todo o mundo, a singularidade do nosso caso, tão monstruoso, deve ser buscada em contextos nacionais específicos, criados pela luta de classes, ou melhor, aqui, pela opressão de classes” (p.104).
“Para o populismo, tudo o que vem das classes populares é suspeito de manipulação, já que os pobres, coitadinhos, não frequentaram a USP ou as outras universidades nela inspiradas e nada entendem do funcionamento do mundo” (p.105).
“Desse modo, a minoria constituída pela elite e pela alta classe média pode pretender legitimidade para interromper o jogo democrático toda vez que o populismo tiver conseguido “iludir” os pobres” (p.105-106).

A OPOSIÇÃO ENTRE MERCADO E ESTADO COMO EXPRESSÃO DA LUTA DE CLASSES – E A CLASSE MÉDIA COMO FIEL DA BALANÇA

“Após a elite paulista ser afastada do controle direto do Estado, este passa a ser criminalizado toda vez que desponta a possibilidade de isso voltar a ocorrer. Como as classes populares foram massacradas e enganadas e não conseguiram construir um projeto nacional a partir dos seus próprios interesses, estes serão articulados por ‘interposta pessoa’, nomeadamente pelo Estado interventor” (p.107).
“A criminalização do Estado, rotulado de patrimonial e corrupto, vai ser, na verdade, o único discurso das elites na luta pela hegemonia social, tendo como contraponto o mercado, agora virtuoso e paradisíaco” (p.107).
“Trata-se de um caso típico de moralização da opressão, quando se retira do adversário de classe, explorado economicamente, também a própria possibilidade de defesa política e moral contra a injustiça. Como a imprensa e a maioria dos intelectuais são cooptados pela elite, esse discurso se tornará, com o tempo, hegemônico” (p.108).
“O mito paulista, agora mito nacional, passa a perseguir a eternização da República Velha por outros meios: mantendo o saque do orçamento público do Estado como banco particular da elite e mitigando, diminuindo e distorcendo o sentido da soberania popular” (p.108).
“Esses são os dois pilares da dominação social da República Velha, os quais desnudam a continuidade visceral do escravismo. Esse é o projeto elitista do mito paulista que, transformado em mito nacional, vai desde então impregnar todas as disputas políticas” (p.108).
“A luta política no Brasil até hoje obedece, portanto, ao mesmo esquema desde 1930. Há quase um século, essa é a verdadeira disputa pelo coração e a mente do público, indefeso diante de uma mídia quase sempre corrupta e venal” (p.108).
“A elite e a alta classe média vão defender o mercado como única forma de regulação legítima da vida social. Para tanto, a criminalização do Estado patrimonial serve como uma luva. Entre nós, a luta de classes assume a forma da preponderância maior ou menor, seja do mercado, seja do Estado, como agente de regulação das contradições sociais” (p.109).

“Para os fins deste livro, vale notar a função de fiel da balança neste processo, uma função desde o início desempenhada pela classe média, sobretudo pela massa da classe média” (p.109).
“A alta classe média, que ocupa os cargos de direção no mercado, no Estado e na esfera pública, vai tender quase sempre a se alinhar com a elite e seu discurso ao mesmo tempo pró-mercado e anti-industrial. O anti-industrialismo dessa fração de classe, que reflete a fragilidade de um industrialismo sem industriais, tem a ver com sua posição de consumidora de artigos de luxo importados” (p.109).
“O fato de a elite brasileira nunca ter desenvolvido um projeto nacional que contemplasse a participação de todos tem seu contraponto de classe na vocação vira-lata da alta classe média, que considera melhor tudo o que vem de fora” (p.110).
“A elite e a alta classe média [...] veem-se como integrantes de outro mundo, desvinculado das circunstâncias concretas que os rodeiam. Daí a espoliação da riqueza coletiva e a sua acumulação no bolso de poucos [...] A industrialização e a ampliação do mercado interno são percebidas pela massa da classe média como um caminho alternativo para o consumo de padrão europeu e norte-americano já alcançado pela alta classe média” (p.113).
“Parte dessa classe, portanto, percebe a industrialização como possibilidade de expansão de seu bem-estar e padrão de consumo” (p.113).
“Entre nós, a desclassificação, ou marginalização, implica o temor tanto da desumanização nas relações interpessoais cotidianas como também da perda efetiva de direitos, à qual o legado da escravidão condena os desclassificados e humilhados” (p.114).
“O que se impõe, portanto, antes de tudo, é saber quais horizontes são abertos ou fechados pelas visões de mundo dominantes. Só assim podemos entender por que partidos, indivíduos e classes sociais agem como agem” (p.116).
“Os temas correlatos – que começam a ganhar um discurso articulado nesse período – de patrimonialismo, personalismo, populismo, jeitinho brasileiro, bem como a histeria em relação à corrupção política – visavam criminalizar o Estado sempre que este se colocasse como representante de demandas populares” (p.116).
“O surgimento do PT, na década de 1980, inaugura uma dinâmica nova e importante, mas que será em parte neutralizada pela absorção, no âmbito do próprio partido, do discurso elitista do moralismo. Não por acaso o PT nasce como o partido da ‘ética na política’, com grande penetração na classe média” (p.117).
“O golpe de 1964 é o resultado de um contexto preparado desde 1954 e adiado por uma década pelo trauma popular causado pelo suicídio de Getúlio. A tentativa de mobilização de trabalhadores rurais e urbanos, encampando um projeto nacional-popular alternativo ao elitista, termina por levar ao fim o breve período de redemocratização que durou 18 anos, assim como das alianças nele vigentes. 117-118
“Na verdade, na segunda metade da década de 1950, com Juscelino Kubitscheck, o presidente “bossa nova”, já se iniciava no Brasil o avanço do capitalismo monopolista da grande produção, um salto possibilitado pelo investimento estatal do período getulista nos setores de infraestrutura” (p.118).
“A entrada do Brasil na fase de produção industrial dos bens de consumo duráveis, cujo ramo mais visível e importante é o setor automobilístico, se dá em associação subordinada com o capital estrangeiro das multinacionais. A industrialização sem industriais se consuma em um capitalismo dependente do capital externo, sem construção de matriz tecnológica própria, empregando mão de obra barata e com o mercado interno protegido para alavancar o lucro dos investidores externos” (p.118).
“A ditadura militar amplia o poder de intervenção do Estado na economia, como meio de expansão da infraestrutura num modelo monopolista, reforçando assim a industrialização dependente e oprimindo as organizações populares e sindicais como forma de manter os salários baixos” (p.118).
“O crescimento econômico passa a ser comandado por dois vetores complementares: a introdução de novos produtos de consumo duráveis, mais caros e destinados ao restrito mercado interno dos 20% privilegiados; e a exportação de produtos manufaturados, explorando a mão de obra barata, no contexto restritivo da divisão de trabalho internacional demarcada pelas grandes multinacionais” (p.119).
“O novo padrão de industrialização cria, assim, uma polarização social na qual surgem não só estilos de vida muito diferenciados, como também mercados distintos, com serviços e mercadorias de qualidade muito diferente” (p.119-120).
“Na realidade, o que acontece é a consolidação de um padrão de desigualdade abissal e cruel que reproduz com outros meios a antiga sociedade escravocrata. Nos dias de hoje, é óbvio, não se segregam desde o berço e em função da cor da pele aquelas pessoas destinadas ao cativeiro” (p.120).
“[...] Ainda que a raça permaneça como indicador importante daqueles que podem ser desprezados e humilhados impunemente são mecanismos de classe que viabilizam a nova escravidão e a nova apartheid” (p.120).
“Por toda parte, o capital econômico é mais exclusivo e restrito a uma pequena elite de proprietários. O que muda são os impostos pelos quais essa riqueza retorna à sociedade – e que, no caso do Brasil, sempre foram escandalosamente baixos” (p.121).
“O acesso privilegiado ao conhecimento valorizado pressupõe uma renda comparativamente maior da família, de modo a comprar o tempo livre dos filhos para que eles se dediquem apenas aos estudos[...]os filhos das classes populares são obrigados desde a adolescência a estudar e trabalhar para ajudar em casa – obviamente, na imensa maioria dos casos, acabam não fazendo bem nem uma coisa nem outra” (p.121-122).
“A compra do tempo livre dos filhos está longe de ser o único privilégio positivo da classe média a ser contraposto aos privilégios negativos das classes populares [...]A capacidade de concentração, a percepção da leitura como atividade a ser estimulada, a autodisciplina e o autocontrole [...]tudo isso é repassado aos filhos da classe média de forma imperceptível, como produto da mera socialização familiar” (p.122).
“O filho das classes populares é condenado a reproduzir a falta de aptidão dos pais, reproduzida secularmente por práticas ativas de exclusão, exploração, humilhação e abandono. Por conta disso, muitos dos filhos dessas classes, aos 5 anos de idade, já entram na escola como perdedores, condenados ao analfabetismo funcional e, depois, ao trabalho semiqualificado e desqualificado” (p.122).
“O tempo livre para o estudo apenas aprofunda o privilégio e a desigualdade de ponto de partida. Sabendo de tudo isso, achar que seu privilégio é ‘merecido’ ou ‘meritocrático’ é muita cara de pau, não é mesmo, caro leitor e cara leitora? Mas é isso que acontece todos os dias em todos os lugares” (p.122).
“No Brasil, enfim, nunca tivemos uma luta de classes de verdade, na qual os interesses das classes populares tenham se feito valer como direito. O que sempre tivemos aqui foi uma cruel e covarde opressão de classe, na qual qualquer tentativa de diminuir, por pouco que fosse a abissal distância social redundou em golpes de Estado e em estados de exceção” (p.1242).

O GOLPE DE 2016 E SUAS PRECONDIÇÕES: O CAPITALISMO FINANCEIRO E O PAPEL DAS CLASSES MÉDIAS

“Na década de 1980, o projeto da industrialização sem empresários industriais vai mostrar claramente os seus limites, patenteando a incapacidade do país para promover um desenvolvimento industrial com autonomia tecnológica [...]” (p.125).
“O raciocínio de curto prazo da elite brasileira sempre boicotou qualquer tentativa de construção de uma base industrial e tecnológica autônoma” (p.125).
“No governo Geisel, o II Plano Nacional de Desenvolvimento previa uma reestruturação profunda do setor industrial e planejamento de longo prazo, mas foi boicotado pela elite empresarial, avessa à presença estatal no comando do esforço [...] Mais uma vez a classe média sairá às ruas, na campanha das Diretas Já, imaginando-se protagonista quando na verdade cumpria um roteiro traçado de antemão pela elite” (p.125).
“A década de 1990, no Brasil, é marcada pela consolidação do capitalismo Financeiro [...] Essa concepção de mundo, construída a partir de 1945, era alicerçada num compromisso de classes que implicava a participação dos trabalhadores nos ganhos de produtividade” (p.126).
“A questão deixa de ser a mera participação nos lucros do capitalismo para a maioria da população. Agora, o que estava em jogo era a tomada do poder político e social a fim de reformá-lo a partir de dentro” (p.126).
“Agora, os capitalistas viam-se diante de algo novo e verdadeiramente revolucionário, um movimento cujo suporte social eram seus próprios filhos bem-educados. O objetivo da revolução expressivista era redefinir os fins da vida social e modificar por dentro o uso do poder” (p.127).
“A produtividade tem de ser um meio para a felicidade individual e coletiva, e não o fim de toda a organização social” (p.127).
”Mesmo no Brasil, onde não estavam presentes várias das precondições sociais europeias, o ano de 1968 assinala o início de forte oposição ao regime militar, com grande peso estudantil e da classe média mais crítica, como se viu no caso da Passeata dos Cem Mil e de uma série de protestos que tiveram comoresposta o Ato Institucional no 5 e o endurecimento do regime” (p.127).
“Assim, na década de 1980, mas sobretudo nas décadas seguintes, uma nova onda perpassa todas as sociedades capitalistas no sentido de redefinir a produtividade e a acumulação infinita de capital nos termos da revolução expressivista” (p.128).

“No Brasil, o “menino de ouro” do capitalismo financeiro vai ser Fernando Henrique Cardoso. Como o leitor e a leitora irá lembrar, FHC é o terceiro nome da “santíssima trindade” do liberalismo conservador brasileiro, ao lado de Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro [...] É com ele que se completa o longo processo que começa na Revolução de 30 erepresenta a vingança da elite então derrotada” (p.129-130).
“No governo FHC, a taxa SELIC chega ao patamar recorde de 45%[...] Isso sem contar a forte suspeita de estudiosos de que dívidas prescritas tenham sido fraudulentamente inscritas no cadastro da dívida pública [...] Paralelamente, a alta classe média, aproveitando o câmbio anti-industrial, volta a consumir produtos importados baratos, como na República Velha” (p.130).
“FHC desmonta o Estado e promove a transferência de recursos, via mercado e Estado, do povo para a elite, ‘tirando onda’ de campeão das minorias oprimidas e defensor abstrato, já que sem recursos ou políticas públicas, dos direitos humanos” (p.130-131).
“A armadilha aqui é a substituição de questões clássicas e seculares, como a defesa dos trabalhadores e das classes populares – por meio da redistribuição de riqueza econômica e poder social – pela nova agenda do capitalismo financeiro” (p.131).
“O PT nasce, portanto, como mais um partido do moralismo postiço da elite e se torna o partido da ‘moralidade na política’, atraindo assim setores de classe média e dos sindicatos organizados” (p.135).
“A maioria acha que bas ta ter um projeto econômico alternativo e mais inclusivo que, espontânea ou magicamente, as pessoas vão compreender seu significado e seu benefício. Não se percebe a importância crucial de elaborar uma narrativa, ou seja, um projeto articulado alternativo ao elitista” (p.135).
“A inexistência desse projeto alternativo impossibilita um ataque ao núcleo do rentismo e da expropriação elitista, como corajosamente procurou fazer a ex presidenta Dilma. Na falta de um projeto articulado e de uma TV pública com conteúdo plural, a presidenta viu-se forçada a deixar que a Rede Globo, braço midiático do próprio rentismo, explicasse a luta política à população nos seus próprios termos” (p.135).
“Nesse contexto, a questão real não é por que houve o golpe, e sim por que ele não aconteceu antes. Foi essa fragilidade simbólica que facilitou o golpe de 2016. O moralismo postiço da Rede Globo e da Lava Jato campeou praticamente sem oposição discursiva e articulada que pudesse denunciar a trama no seu nascedouro” (p.136).
“Como as causas reais do empobrecimento não são compreensíveis – aqui a mídia cumpre seu papel mais canalha –, o protesto assume a forma da violenta rejeição ao pacto democrático e seus pressupostos humanitários, percebidos como a causa de todo mal” (p.136).
“Uma parcela da massa da classe média, ao contrário, se engajou numa crítica ao processo de golpe, e muitos se arrependem de terem se deixado usar pela manipulação midiática” (p.138).
“Esse quadro mostra quanto a classe média é diversificada e possui dentro de si todas as gradações de sensibilidade política e social. Um sintoma da abrangência dessas colorações possíveis é a preferência muitas vezes dividida entre Bolsonaro e Lula, refletindo a nova divisão do país como um todo” (p.138).
“Desse modo, saber quem somos de verdade é o primeiro passo para retomar um caminho que foi construído por gente e, portanto, pode ser refeito por gente. Nesse sentido, a classe média e suas frações têm um poder inédito entre nós. Para onde elas se inclinarem, toda a sociedade, muito provavelmente, também vai se inclinar” (p.141).
“Mas, por outro lado, a massa da classe média tem a possibilidade de ser, num país tão desigual e com classes populares tão perseguidas e desmobilizadas, um importante vetor de mudanças sociais, como foi no passado” (p.141-142).

TRAJETÓRIAS DE VIDA
A alta classe média
SÉRGIO: O CEU DE UM BANCO EXPLICA COMO SE COMPRA O MUNDO
“Sérgio não é um CEO qualquer. Muito inteligente, culto, leitor de psicanálise nas horas vagas [...] Sérgio tinha plena consciência de quem era e do que fazia” (p.144).
“Desde a adolescência, ele era grande amigo de João Carlos. Filho de banqueiros, havia acumulado fortuna própria na década de 1990, durante o governo de FHC, administrando fundos de investimento estrangeiros [...] Lucrou tanto se utilizando do dinheiro alheio que fundou o próprio banco” (p.145).
“Nessa época, Sérgio frequentava uma faculdade de Direito nos Estados Unidos. Depois passou um ano em Londres, estudando finanças e ciência política e, por indicação de amigos do pai, estagiando num escritório que lidava com o mercado financeiro” (p.145).
“No início dos anos 2000 [...] era um multimilionário por ‘esforço próprio’ e apenas naquele ano tinha ganhado mais dinheiro do que o pai durante toda a vida [...] Hoje o departamento jurídico é o centro nervoso do banco, com tudo passando pelas mãos de Sérgio, e ocupa um andar inteiro de um prédio moderno, decorado com luxo e bom gosto” (p.145).

ANTÔNIO: O GERENTE DA CADEIA DE LOJAS E A LUTA DE CLASSES NA CLASSE MÉDIA
“Antônio Bianchi é gerente-geral de uma cadeia de lojas de roupas femininas com sede em São Paulo. A cadeia possui 12 filiais em oito das maiores cidades brasileiras [...] Lúcia Amaulfi é gerente de um dos departamentos da matriz em São Paulo” (p.155-156).
“Por meio de Lúcia foi possível reconstruir tanto o estilo de gerência de Antônio como a forma pela qual ela, típica representante da massa da classe média, reage a uma relação de trabalho abusiva” (p.156).
“O cargo de direção de Bianchi foi conseguido por intermédio das relações familiares de sua mulher, parente próxima dos proprietários da rede de lojas, uma típica empresa familiar que logrou crescimento expressivo a partir do ano 2000. Bianchi, como gosta de enfatizar, é quem chega primeiro e quem sai por último na sede administrativa” (p.156).
“O que acredito é no trabalho. Por conta disso, faço questão de ter uma relação próxima com meus funcionários, eles precisam saber que podem contar comigo e também conto com eles” (p.156).
“Quem é o grande inimigo do Brasil?” (p.157).
“O PT quase acabou com o Brasil. A crise que vivemos agora é a herança que esse pessoal deixou” (p.157).
“Lúcia me mostrou alguns desses e-mails. Neles Bianchi diz estar pensando no futuro dos próprios funcionários ao pedir que fossem à rua. Lula, por exemplo, devia ser preso para mostrar que existe lei no Brasil. O futuro do Brasil dependeria disso. E não são apenas e-mails” (p.158).
“Quando o STF negou o habeas corpus a Lula, Bianchi fez festa na empresa e em casa. Abriu garrafas de espumante Freixenet para os funcionários e cada um tomou uma pequena taça” (p.158).
“Mas a festa de arromba foi em sua casa, à noite. Todos os diretores e gerentes foram convidados e comentaram depois.   No dia seguinte, foi a primeira vez que o vi chegar tarde ao trabalho’, conta Lúcia” (p.158).
“Sergio Moro é outro ícone de Bianchi. Para ele, Moro é destemido e tem coragem de enfrentar os poderosos. Quando perguntado acerca de quem são esses ‘poderosos’, Bianchi não titubeia: ‘Lula, José Dirceu e Eduardo Cunha são os chefes das quadrilhas mais importantes do Brasil.’ E Moro conseguiu ‘botar todo mundo na cadeia’. ‘Isso não é para qualquer um.’ ” (p.161).

A FAMÍLIA PRADO
“O ambiente descontraído leva as pessoas a revelarem mais o que efetivamente sentem e a esconder menos as opiniões que consideram controversas [...] Afinal, não controlamos nosso comportamento tanto quanto nossas declarações e temos pouca consciência da forma como os outros nos percebem” (p.162-163).
“Discreto, afável e muito bem-educado, Luiz Prado é um engenheiro de minas muito bem-sucedido, com uma pequena empresa, da qual é o único funcionário, que presta assessoria a empresas internacionais interessadas na prospecção de pedras preciosas no Brasil [...] Em 2011, um ano especialmente bom para seus negócios, Luiz chegou a ganhar 2 milhões de reais” (p.163).
“Sua mulher, Bibiana, também tem carreira de sucesso, como advogada de um grande escritório de São Paulo. Assim como Luiz, ela herdou a profissão. O pai era advogado conhecido, professor de universidade de renome e dono de uma banca respeitável. Os quatro filhos seguiram a carreira e, com exceção dela, todos trabalham no escritório deixado pelo pai, hoje aposentado e com 91 anos” (p.163).

RENATA E ROBERTO: A CLASSE MÉDIA DE OSLO
“Renata Berger e Roberto Gouveia moram no Rio de Janeiro, num belo apartamento com uma vista espetacular para a lagoa Rodrigo de Freitas. Ali fui recebido pelo casal num final de tarde de sábado, e o entardecer foi belíssimo” (p.168).
“Roberto é carioca, torcedor fanático do Fluminense e cirurgião-plástico. Renata é gaúcha e, apesar de morar na capital carioca há muito, guarda intacto o sotaque gaúcho” (p.168).
“Renata é estilista de moda, tem parceria com uma loja on-line, para a qual desenha as roupas, além de escrever para uma conhecida revista feminina. É entusiasta do empreendedorismo sustentável” (p.168).
“As roupas que Renata desenha são comercializadas on-line e confeccionadas com material reciclado e upcycled, como redes de pescadores e malhas descartadas, submetidos a processos de tingimento que usam menos água e geram menos desperdício” (p.169).
“O mais legal disso tudo é que consigo criar uma nova história para um material que estava destinado ao lixo e a causar danos ao meio ambiente” (p.169).
“Como editora de moda, as reportagens de Renata têm sempre este perfil de aliar a moda ao espírito ecológico e à defesa da expressão artística de comunidades ameaçadas. Mas Renata é uma espécie de faz-tudo na revista e também entrou na seara do feminismo de autoajuda” (p.172).
“O Roberto não tem paciência para sair comigo e com minhas amigas do trabalho, prefere jogar tênis e tomar uísque com os amigos. Cada um tem que ter seu espaço, e a maior parte das reclamações das minhas leitoras tem a ver com coisas assim, em exigir demais da outra pessoa e do relacionamento” (p.172).

CAIO: O GERENTE DE FAZENDA
“Atualmente, Caio administra uma grande empresa rural, com várias fazendas no Triângulo Mineiro e nos estados de São Paulo e Mato Grosso do Sul. Ele mora numa delas, uma fazenda de criação de gado e cavalos de raça perto da cidade de Uberaba. Para” (p.173).
“Os filhos e a mulher de Caio, além de alguns amigos, estavam bebendo cerveja e uísque puro malte. Assim que chegamos, a mulher nos cumprimentou e logo se retirou para dentro da casa” (p.173).
“Entendi então que, para Caio, qualquer imposto é um abuso e que ele se sentia espoliado pelo Estado” (p.176).
“Na visão de mundo de Caio, o Estado é um agente da corrupção que espolia quem trabalha. Ao indagar se apoiava a Lava Jato, Caio disse que sim, que Sergio Moro e Bolsonaro eram os maiores e mais corajosos brasileiros” (p.176).

ANÁLISE DAS ENTREVISTAS DA ALTA CLASSE MÉDIA
“A alta classe média, ou seja, a camada superior da classe média, que combina porções razoáveis de todos os capitais importantes [...]é uma fração de classe decisiva para o capitalismo financeiro hoje dominante” (p.176).
“O caso de Bianchi é paradigmático. Todo seu orgulho advém da imagem que tem de si mesmo como um gestor humano’, genuinamente preocupado com seus colaboradores no contexto de uma gestão compartilhada e solidária [...] A confusão dessas duas dimensões, moralidade e cinismo, até mesmo no próprio Bianchi, é inseparável de seu sucesso” (p.178).
“Lúcia é a incorporação perfeita da luta de classes no âmbito da própria classe média, entre a alta classe média – representada por Bianchi – e a massa da classe média – representada por ela mesma –, que se incumbe das funções intermediárias de supervisão e controle” (p.178).
“Pela trajetória familiar, Lúcia se inclui na massa da classe média mais crítica e de esquerda. Filha de posseiros expulsos por grileiros poderosos do Paraná, Lúcia sabe de quem é filha e tem orgulho da luta dos pais” (p.179).
“O ‘safanão’ que a mulher de Caio leva ao esconder a chave do carro e o ridículo a que foi exposta demonstram quanto ainda é aceitável no seu meio este tipo de tratamento social humilhante para a mulher. E Caio ainda apoia Sergio Moro e Bolsonaro como figuras éticas que enfrentam a corrupção” (p.180).
 “Seja na esfera estatal, seja na esfera do mercado – rural no caso de Caio e urbano no de Bianchi –, todos têm na “desfaçatez” de classe, como diria Machado, ou na cara de pau do moralismo postiço, como prefiro, sua marca mais Nítida” (p.180).
“Ao contrário de Caio e Bianchi, que ainda recorrem ao moralismo de fachada, Sérgio não recorre a nenhuma dimensão moral. [...] Para Sérgio, o que faz é apenas se adaptar ao mundo do dinheiro, o qual não foi inventado por ele. Ao comprar as pessoas, está somente seguindo as regras desse mundo” (p.181).
“Sérgio é a mais perfeita comprovação da gênese histórica das relações de classe e poder entre nós como expusemos na segunda parte deste livro. A corrupção visada pelo moralismo de fachada, da qual Sergio Moro é o grande campeão, serve apenas para encobrir e tornar invisível a corrupção real” (p.181).
“Essa leitura interpreta a ética da dignidade, ou seja, do trabalho útil para a sociedade, universalizável, como indissociável da ética da sensibilidade. A universalização de direitos para todos os trabalhadores não se contrapõe à luta pela expressão da singularidade individual” (p.183).
“Como o capitalismo financeiro destruiu esse potencial de aprendizagem individual e coletiva? Primeiro, separando as questões da dignidade universalizável do trabalho útil daquelas atinentes ao expressivismo, ou seja, do esforço individual de autoconhecimento e das formas de vida decorrentes desse conhecimento” (p.183).
“Desde que não se queira redistribuir riqueza ou poder, tudo pode ser aceitável pelo capitalismo financeiro, que em seguida ainda se vende como emancipatório e justo. Na verdade, as lutas por redistribuição e pela diversidade estão intimamente ligadas” (p.184).
“As descobertas morais e cognitivas, que deveriam levar a um aprofundamento da experiência humana, foram transformadas em mercadoria para debilitar a crítica de um mundo social injusto e irracional e, além disso, proporcionar lucros com a colonização da dimensão moral das pessoas” (p.184).
“A família Prado, por sua vez, mostra que situações concretas de injustiça podem produzir aprendizados possíveis mesmo na alta classe média. A experiência de Bibiana, baseada em sua participação em processos da Lava Jato, a fez compreender e aprofundar uma atitude de crítica social rara na sua classe de origem” (p.185).

A MASSA DA CLASSE MÉDIA
RONALDO: PUBLICITÁRIO NO RIO DE JANEIRO
“Ronaldo é funcionário de um grupo de publicidade com sede em Barcelona e agências em várias cidades brasileiras, entre as quais Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro” (p.187).
“O que mais chama atenção na agência é que mais parece uma residência acolhedora, com poltronas para as pessoas se aninharem, cozinha e uma sala com mesas nas quais os computadores da Apple são os únicos acessórios que indicam se tratar de um local de trabalho” (p.187).
“A ideologia da empresa era a de que todos formavam uma família e que o trabalho eficiente tinha de ser criativo e divertido. Ronaldo fala com evidente orgulho do bom relacionamento entre ele e os colegas de trabalho e de moradia. E não lhe parece problemático o prolongamento do ambiente de serviço em casa e fora dos horários de expediente” (p.188).

INÁCIO: CORRETOR IMOBILIÁRIO QUE VIROU MOTORISTA DE CARROS DE LUXO
“Partidário fervoroso de Jair Bolsonaro, Inácio acredita que as pessoas devem se armar para se defender de bandidos, em especial as mulheres, que correm o risco de estupro. Para Inácio, todos os políticos são corruptos” (p.191).
“Por conta disso, vota apenas em candidatos que já são ricos, pois supostamente não precisariam roubar do Estado [...]Mas a crença mais surrealista de Inácio é a de que sabe onde Lula teria escondido os milhões supostamente desviados da Petrobras” (p.191).
“Na opinião de Inácio, a política acabou com o Rio de Janeiro. O velho e surrado patrimonialismo continua sendo o mais perfeito bode expiatório para a rapina do mercado por seus donos, que permanecem invisíveis” (p.192).
“Para Inácio, Bolsonaro seria uma espécie de Sergio Moro com um fuzil na mão. É, aliás, incrível a contiguidade entre esses dois personagens no imaginário social de várias pessoas de perfil mais conservador que entrevistei” (p.194).

WILLIAM: O ENGENHEIRO QUE VIROU MOTORISTA DA UBER
“Conheci William como motorista do Uber no Rio de Janeiro. Ele me conta que foi engenheiro da Petrobras e, com a crise na empresa, acabou sendo dispensados com vários outros” (p.195).
“Quando vou poder trabalhar de novo como engenheiro? Minha revolta é grande. Mas existem milhares de pessoas na mesma situação que eu. Ou ainda muito pior. O Rio de Janeiro está na miséria. Não tem emprego para ninguém. A violência está por todo lado e todo mundo tem medo de sair nas  ruas. É cada vez mais raro ver um carro da polícia” (p.197).

MIRTES: A APOSENTADA QUE FOI ÀS RUAS E SE ARREPENDEU
“Mirtes é viúva desde os 50 anos e hoje tem 63. Contou-me que chegou a ir a alguns bailes para pessoas mais idosas, mas odiou a forma como os homens abordavam as mulheres nesses lugares” (p.198).
“Mirtes me mostrou fotos das manifestações de que participou em Porto Alegre, com a família e os amigos, contra o PT e a corrupção [...] Em todas as fotos, está vestida com a camisa da seleção e bandagem na testa, com palavras de apoio a Sergio Moro,  sorriso aberto, abraçada com as amigas [...]” (p.199).
“Eu confesso que, entre 2013 e 2016, minha vida mudou inteiramente. Pela primeira vez senti que fazia diferença para a vida do Brasil como um todo. Sou muito ligada à família, e íamos juntos às manifestações, todos vestidos com a camisa da seleção” (p.199).
“Minha maior tristeza é a sensação de ter sido enganada. A corrupção só fez aumentar desde então e ninguém mais vai para a cadeia. Eu realmente pensava que o PT era uma organização de criminosos, e o Lula, um mafioso, o líder deles [...] Mas hoje vejo pelo trabalho do meu filho que as coisas não eram bem assim” (p.200).
“Isso mostra que tinha coisas boas também com o PT e isso tudo acabou Minha aposentadoria é pequena e minhas três casinhas, que meu marido me deixou, são difíceis de alugar. Ninguém tem mais dinheiro. Baixei o aluguel de todas, mas ainda assim é difícil conseguir alugar” (p.200).

LÍDIA: COMO SE TODO TIPO DE RACISMO FOSSE UMA COISA SÓ
“Lídia é negra e nasceu numa família pobre da periferia de Natal, no Rio Grande do Norte. O pai, mulato, era militar; a mãe, negra e neta de escravos, trabalhava como  empregada doméstica. Lídia é a sexta de oito irmãos” (p.203).
“Na lembrança de Lídia, era como se o racismo penetrasse em tudo e contaminasse tudo naquela casa. Como se o racismo estivesse antes de tudo o que se pensa, antes mesmo do disparo de qualquer sinapse no cérebro” (p.203).
“Um militar nacionalista que depois seria perseguido pela ditadura, o pai protegia Lídia e as outras filhas mais que os filhos. Apesar de conservador nos costumes, ele insistiu na educação delas, a fim de que “nunca precisassem de um homem para sobreviver” (p.204).
“A infância atribulada de Lídia a convenceu de que seu único caminho para sobreviver eram os estudos, aos quais passou a dedicar todo o tempo livre. Na escola pública, foi alvo do mesmo racismo que conhecia em casa. Decidida a ser a melhor aluna, Lídia logo começou a se destacar” (p.204).
“Lídia continuou tirando as melhores notas. E passou em primeiro lugar no vestibular para o curso de engenharia zootécnica numa universidade federal. Com isso, conseguiu uma vaga no dormitório dos estudantes e passou a vender doces com uma amiga para se alimentar no refeitório universitário” (p.205).
“Pela primeira vez não me senti explorada por ninguém. Pelo contrário, passei a ser valorizada. Não havia reflexão ou debate sobre racismo ou política, eram simplesmente pessoas que respeitavam os outros” (p.206).
“Graças ao extraordinário esforço pessoal, Lídia conseguiu entrar para oquadro técnico de uma grande empresa estrangeira do ramo farmacêutico. Mas também ali, no começo pelo menos, sentiu a mesma exploração e a mesma sensação de não ter voz” (p.207).
“Nos últimos anos, as coisas mudaram para melhor. Entrou no comitê de gênero e raça da empresa, o que a motivou a ler e aprender mais sobre o assunto” (p.207).

GISÁLIO: A VITÓRIA SOBRE A POBREZA
“Nascido numa família pobre, Gisálio tem 31 anos e é professor da rede pública de ensino em Brasília” (p.208).
“Gisálio teve uma infância de baixa classe média, sem luxos, mas sem necessidades. A família comia, por exemplo, carne todos os dias, ainda que quase sempre carne de segunda” (p.208).
“Na virada do século XXI, os patrões perderam a concessão do cartório em São Paulo, e seus pais passaram a enfrentar graves dificuldades financeiras. A família voltou a Novo Horizonte, para viver de favor na casa dos pais de Angélica” (p.209).
“[...] Gisálio tinha vergonha do pai e da nova situação familiar. Além disso, a escola pública de Novo Horizonte era muito fraca e não preparava ninguém adequadamente. Ele relata que vários amigos da época caíram na criminalidade e acabaram presos” (p.209-210).
“Mas foi no cursinho particular em Novo Horizonte, pago com esforço pelos pais, que se manifestou o resultado concreto do estímulo ao estudo semeado pelos pais em meio a tantas dificuldades [...] O professor de história lhe apresentou Marx, Gramsci e historiadores marxistas ingleses para interpretar o capitalismo e sua formação” (p.210).
“Gisálio descobriu então uma inclinação política que nunca mais irá abandonar. Decidiu-se pelo magistério, a fim de fazer com outros jovens o que aqueles professores haviam lhe proporcionado, abrindo os seus olhos para o mundo” (p.210).
“Enquanto estudava, se engajou no PT de Araraquara, participando ativamente das campanhas políticas do período. Antes de tudo, queria que mais jovens tivessem a mesma oportunidade que ele, e não a vida sem futuro e sem esperança que havia conhecido na escola pública” (p.211).
“Agora o filho estava fazendo mestrado em pedagogia na recém-inaugurada USP Leste. Na universidade, Gisálio conheceu Aurora, professora no Distrito Federal, que também fazia mestrado. Os dois se casaram e hoje dão aulas na rede pública do DF [...]” (p.211).

ANÁLISE DAS ENTREVISTAS DA MASSA DA CLASSE MÉDIA

“Na massa da classe média, as visões de mundo tendem a ser mais diversificadas, multifacetadas e polarizadas do que na alta classe média” (p.212).
“Nesse segmento social, tende a ser maior a distância entre o discurso do capitalismo financeiro e a vida prática das pessoas. Se na alta classe média vimos a confluência de vários tipos de capital [...] a situação é bem diferente na massa da classe média” (p.213).
“No princípio, Ronaldo tinha prazer com as viagens a trabalho. O estágio em Barcelona foi muito compensador e divertido. Mas a constância dos deslocamentos, sobre os quais não tem controle, o impede até mesmo de manter relacionamentos duradouros” (p.213).
“A própria residência de Ronaldo é extensão do trabalho. Ele mora com colegas da agência, justamente para ficar mais perto da empresa, e obviamente o trabalho é o assunto dominante” (p.214).
“Os casos de Inácio e William são também paradigmáticos para a massa da classe média brasileira. A trajetória de vida descendente de Inácio, que perde um emprego bom e lucrativo e tem de se adaptar a uma ocupação com menos status relativo e um terço dos ganhos anteriores, o deixa ressentido e frustrado” (p.214-215).
“Como sempre, o ódio e o desprezo ao povo, materializados na estigmatização da soberania popular travestida de populismo pelo ataque midiático, são acobertados com o véu do ódio seletivo à política, desde que esta tenha alguma vinculação com os interesses populares” (p.215).
“Desse modo, o ódio que Inácio volta aos políticos e à política serve de cobertura e racionalização, protegendo a sua autoestima” (p.215).
“Portanto, na massa da classe média, é o medo objetivo da proletarização que funciona como deflagrador de todas as crenças antipopulares” (p.216).
“No caso de Inácio, bem como no de William, a predileção por Bolsonaro advém do mesmo motivo: a necessidade de limpeza total da política. Em William, a agressividade é menor. Apesar de considerar Bolsonaro o único antídoto à crise moral do país, ele não é tão tosco e primitivo quanto Inácio” (p.217).
“Já o caso de Mirtes mostra a reação de uma camada mais estabelecida da massa da classe média. Também ela possui os preconceitos de classe típicos de seu estrato social. Os pobres estão aí para servir como os escravos serviam [...]” (p.218).
“Mirtes se decepcionou com o moralismo de fachada da Rede Globo e da Lava Jato. Mas não cai na armadilha de procurar um herói vingador, que iria por fim limpar o país. Ao contrário, percebe que foi enganada” (p.9.
“São poucos os que alcançam isso, vencendo resistências em na família e os sentimentos de inveja e despeito dos mais próximos, além do racismo de classe e de raça mais cruéis. A grande maioria sucumbe à pressão familiar e social para que se mantenham subjugados e impotentes” (p.220).
“Alguns dos que conseguem, no entanto, desenvolvem uma percepção do mundo social antagônica à de seus colegas da classe média estabelecida. Para Lídia, Lula é ela. O sofrimento do ex-presidente, preso sem provas e injustamente, é a expressão do mesmo sofrimento que ela teve de aturar calada a vida toda” (p.220).
 “De qualquer modo, comprova-se assim a importância equivalente tanto do ponto de partida de classe como da trajetória específica a cada indivíduo ao subir ou descer na escala social” (p.221).

CONCLUSÃO: A CLASSE MÉDIA EM TEMPOS DE CAPITALISMO FINANCEIRO

“Este estudo sobre a classe média brasileira nos levou a uma reconstrução histórica tanto da moralidade da classe em geral quanto de sua gênese especificamente brasileira” (p.222).
“A atenção aos elementos universais é o que, afinal, nos mostra que não existem diferenças relevantes na forma pela qual a classe média constrói seus privilégios nas sociedades modernas. Tais privilégios sempre se baseiam na apropriação do capital cultural mais valorizado e prestigioso – e isto não é como a jabuticaba, algo que existe só no Brasil” (p.222).
“Vimos que o capitalismo financeiro cria não só uma forma específica de acumulação de capital, com ritmo e lógica peculiares, mas também uma semântica, uma concepção de felicidade e uma narrativa nova para o mundo social” (p.224).
 “Toda a riqueza não estaria concentrando-se cada vez mais nas mãos do 1% mais rico se a inteligência coletiva não tivesse sido sequestrada e rebaixada” (p.224).
“Se hoje em dia metade das empresas brasileiras e a maior parte da população está endividada até o pescoço, isso não provoca reação nem rebelião organizada nas pessoas” (p.225).
“Todo o mecanismo de comercialização, precisamente concebido para atender aos desejos e necessidades de cada um, é produzido por nós mesmos com nossas ‘curtidas’, sem qualquer custo para a plataforma comercial” (p.225).
“Por conta disso, a doença de nosso tempo – cada época tem a sua doença característica – é a depressão ou o esgotamento. Como a agressividade e o ressentimento pela vida incompleta voltam-se agora contra o próprio indivíduo [...]” (p.226).
“Todas as suas escolhas e opiniões são presididas pela semântica expressiva travestida de marketing em seu ramo de atividade” (p.229).
“O capitalismo financeiro mudou o sentido da liberdade e da autonomia individual como forma de aumentar a margem dos proprietários no excedente social global” (p.230).
“Como a classe média se distingue pela relação que entretém com a elite acima e com as classes populares, temos que esclarecer sua posição, primeiro examinando essa elite que não só despreza o próprio país como o vê como fonte de riquezas a serem saqueadas no curto prazo” (p.230).
“A massa da classe média é explorada de modo racional e irracional. Como seu privilégio de classe decorre do acesso restrito a um conhecimento comparativamente mais valorizado que o das classes populares, o sentimento antipopular da elite e da alta classe média procura ao máximo manipular o temor da massa da classe média de perder seus privilégios” (p.237).
“Este livro se encerra antes das dramáticas eleições de 2018. Como as causas reais do empobrecimento do país, que vimos ao longo do livro, são tornadas invisíveis, o ódio cego tomou conta de grande parte da classe média e de setores populares. Jair Bolsonaro surfa nessa onda de ódio e violência irrefletidos” (p.237).







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