Roteiro de atividades PIBID GEOGRAFIA CFP UFCG
Período:
dezembro
DEZEMBRO:
1-
TEXTO: A CLASSE MÉDIA NO ESPELHO: AUTOR:
JESSÉ DE SOUZA – LEITURA E FAZER RESUMO
DE CADA CAPÍTULO – enviar por e-mail e colocar impresso no Portfólio -
Ver Entrevista: https://www.youtube.com/watch?v=FHclP9ZRq04
Ver livro on line: http://www.fetrhotel.com.br/wp-content/uploads/2018/11/Jesse%CC%81-Souza-A-Classe-Me%CC%81dia-no-Espelho.pdf
Ler capítulos e fazer fichamentos:
- Introdução
- A MORALIDADE DA CLASSE MÉDIA
- A classe média e a construção do indivíduo moderno
- A invenção histórica do “ser humano sensível”
- Aprendizado moral e justificação de privilégios
- A CONSTRUÇÃO DA CLASSE MÉDIA BRASILEIRA
- A gênese da classe média brasileira
- O campo na cidade
- O advento do capitalismo industrial
- A construção dos projetos nacionais: um mais inclusivo e o outro excludente
- A oposição entre mercado e Estado como expressão da luta de classes – e a
- classe média como fiel da balança
- O golpe de 2016 e suas precondições: o capitalismo financeiro e o papel das classes médias
SOBRE LEITURAS REALIZADAS:
TEXTOS
REFERENTES A ATIVIDADES DO MÊS DE DEZEMBRO DE 2018 E JANEIRO 2019-PIBID
ATIVIDADE DE DEZEMBRO
SOUZA,
Jessé. A classe média no espelho: Sua
história, seus sonhos e ilusões, sua realidade. [recurso eletrônico], Rio de Janeiro:
Estação Brasil, 2018.
A
MORALIDADE DA CLASSE MÉDIA
“O que será dito acerca da classe
média neste livro, o leitor ou a leitora muito provavelmente pertencente a esta
classe social – não ouviu nem leu em nenhum outro lugar” (P.7).
“Estou convencido de que tudo pode
ser explicado, até mesmo os assuntos mais complicados, de forma clara e
acessível. É o que pretendo fazer aqui, sem banalizar temas complexos nem ceder
a superficialidades” (p.7).
“[...] o grande obstáculo para se
alcançar um conhecimento efetivo, emancipador e autônomo está não somente na
maior ou menor clareza das ideias, mas sim no medo diante da verdade” (p.8).
“Nas redes sociais costumamos nos
proteger dos conteúdos contrários ao que acreditamos e, nos livros, só buscamos
aquilo que confirma as nossas convicções. A covardia e a mentira são falsas
aliadas de todos nós e excluem tudo o que há de generoso e belo na natureza
humana” (p.8).
“[...] teremos de desconstruir as
mentiras, pretensamente científicas, que nos contaram a vida toda” (p.9).
“Tais mentiras são de dois tipos.
No primeiro, com o intuito de sermos mais domináveis, somos induzidos a nos ver
como homens e mulheres excepcionalmente capacitados. [...] Segundo ele, somos
“indivíduos” autônomos e livres, que vivem num mundo transparente e claro”
(p.9).
“A falsidade dessa ideia [...] ela
estimula nosso narcisismo infantil, ou seja, o desejo de nos vermos como
fortes, inteligentes e poderosos. A felicidade está logo ali na esquina, e
depende apenas de nossa vontade livre e autônoma para ser conquistada” (p.9).
“Amamos essas mentiras porque nos
dão a impressão de que não somos limitados nem estamos submetidos a
constrangimentos e impossibilidades. Temos a impressão de que podemos tudo,
basta querer” (p.9).
“Como pode existir classe social,
se somos todos indivíduos livres, autônomos e poderosos? Admitir que
pertencemos a uma classe social é reconhecer que somos “reduzidos” a alguma
coisa.” (p.10).
“Entre todas as classes sociais, a classe
média – assim como a dos excluídos – é também a menos conhecida. [...].
Enquanto os excluídos são simplesmente invisibilizados e desprezados, a classe
média representa um ideal desejável e de grande força simbólica” (p.10).
“A classe média está intimamente
associada ao individualismo e à autonomia individual. E não existe valor mais
alto no Ocidente do que a autonomia individual. Além disso, uma sociedade de
classe média é percebida como igualitária e justa, conciliando os registros
positivos do trabalho produtivo, da liberdade individual e da vida democrática”
(p.10).
“O
economista Marcelo Neri, o pai da ideia de uma “nova classe média”, simplesmente deduziu a
suposta nova classe a partir da renda média, como se uma classe social fosse
construída apenas pela renda” (p.11)
“O
recurso à definição de classe social baseada na renda torna possível falar de
classe social e manter completamente intocadas as mentiras sobre liberdade e
autonomia” (p.11)
“A renda também ajuda a aprofundar
a desigualdade, na medida em que as famílias de classe média podem comprar o
tempo livre dos filhos apenas para o estudo. Nas classes populares, por outro
lado, os filhos começam a trabalhar e estudar aos 12 ou 13 anos” (p.11-12).
“Por aí se explica a renda
diferencial dos indivíduos da classe média em relação aos das classes
populares. Ao tornar invisível a reprodução de privilégios, a pseudociência
liberal se torna manipuladora, invertendo causas e efeitos” (p.12).
“Hoje em dia, o trabalhador
precário não se considera pobre, mas de classe média. Os pobres são apenas os
excluídos e marginalizados. A classe média real, por sua vez, se vê como
‘elite’, contribuindo para um autoengano fatal e de consequências terríveis
para o destino da sociedade brasileira e da própria massa da classe média”
(p.12).
“Num mundo onde se imagina existir
apenas dinheiro e poder como forças determinantes do nosso comportamento estão
convencidas de que é possível demonstrar cabalmente a fragilidade e a mentira
dessa visão” (p. 13).
“Os indivíduos das diversas classes
lutam tanto por monopolizar o acesso a coisas materiais – carros, viagens e
apartamentos –, como pelo acesso a coisas imateriais e simbólicas – respeito,
reconhecimento social e prestígio. As duas dimensões têm igual relevância e são
indissociáveis” (p.15).
“A alta classe média é o verdadeiro
representante, o real “capataz” que, por delegação, exerce a função de comando
da sociedade em todos os níveis[...] Que esta classe muito bem paga, mas com
origem e trajetória de classe típicas da classe média, se perceba como “elite”
faz parte da ilusão objetiva que lhe permite defender tão bem os interesses dos
seus patrões”(p. 16).
“Já a massa da classe média perfaz
o que se costuma denominar classe média baixa ou média – ou ainda, pelos
critérios aproximativos de renda, as chamadas classes A e B” (p.16).
A CONSTRUÇÃO DA CLASSE MÉDIA BRASILEIRA
“Em todas as épocas e lugares, os
seres humanos têm necessidades similares. Todos possuem uma ‘necessidade
externa’ – por comida, proteção contra as intempéries e sobrevivência material
–, e uma “necessidade interna” – de dotar de sentido a própria vida” (p.19).
“[...] a capacidade
humana de autorreflexão e descoberta de novos sentidos para a vida pessoal e
social sempre foi recalcada e mantida sob estrita vigilância. Essa capacidade
humana é revolucionária e, quando deixada livre, tende a questionar o sentido
da tradição e da reprodução impensada da vida” (p.20).
“Há
uma contradição óbvia entre as novas possibilidades históricas de acesso à
educação e à informação, potencialmente favoráveis à difusão do pensamento
reflexivo e autônomo, e, do outro lado, as forças mobilizadas para que isso
jamais aconteça” (p.20).
“Para saber como
chegamos a este ponto, nada melhor que revisitar as origens e a gênese
histórica dessa saga do espírito humano. De início, a construção e a
interpretação da necessidade interna são determinadas pela religião” (p.20).
“O surgimento da noção
de uma individualidade que não só pensa o mundo a partir de si mesmo, como
efetua ‘escolhas’ de acordo com sua capacidade de discernimento, é um produto
da tradição judaico-cristã” (p.21).
“[...] Com o judaísmo,
pela primeira vez os mandamentos da divindade são percebidos como demandas
morais dirigidas à consciência individual dos fiéis, que ‘escolhem’, de acordo
com sua consciência, seguir ou não a regra imposta pela divindade” (p.21).
“O cristianismo recebe
e aprofunda o legado judaico. A mensagem de são Paulo rompe a divisão judaica
entre eleitos e não eleitos e difunde a ideia de que todos são iguais e
passíveis de salvação. Agora, a mensagem religiosa se estende potencialmente a
toda a humanidade [...] Já se nota, então, a forma singular pela qual as ideias
influenciam o comportamento prático das pessoas comuns” (p.22).
“As ideias morais e a
eficácia prática dessa mensagem singular estão, portanto, intimamente
relacionadas ao esforço cotidiano e incansável de instituições importantes.
Essa é uma constatação fundamental para os fins deste livro” (p.22).
“Nosso objetivo é
recuperar essa lembrança e, com ela, a capacidade reflexiva que os podres
poderes, voluntariamente, nos fizeram esquecer com o intuito de melhor nos
controlar” (p.23).
“[...] O que nos
importa, portanto, é a eficácia social das ideias, que as torna fatores
determinantes da existência cotidiana. Existem ideias que humilham, desempregam
e oprimem, fingindo que fazem precisamente o oposto. São essas ideias que têm
de ser denunciada”(p.23).
“A moralidade é a
dimensão que ilumina e constrói uma prática concreta. E nós, como seres
humanos, somos a resultante da ação de ideias que são, ao mesmo tempo, valores
e nos orientam na condução cotidiana da vida” (p.24).
“O modo como avaliamos
a nós mesmos e aos outros, a nossa percepção de algo como virtuoso ou como vil,
só se explica com base nessa hierarquia moral ‘invisível’. Ainda que não seja
refletida, tal hierarquia domina a produção de todas as nossas” (p.24).
“O liberalismo
dominante nada de braçada nessas ilusões objetivas. Para os egos infantilizados
e inflados, ele reforça a ideia de que cada indivíduo define sua vida, seu
conceito de felicidade e seus próprios valores” (p.24).
“Esses inevitáveis
“sentimentos morais”– como culpa, remorso, ressentimento, raiva ou inveja –
comprovam que o “social” e sua força moral estão ‘dentro’ – e não apenas ‘fora’
– de nós, e precisamente por conta disso essa força é tão acentuada” (p.25).
“Antes, a noção de
felicidade e virtude que dava sentido à vida acenava com a possibilidade de
salvação no além-mundo” (p.25).
“Nesse processo
histórico em que se deu a passagem da religiosidade à secularização do mundo, o
fundamental é compreender como o sentido da vida pessoal e do mundo social
deixa de depender da ‘salvação no além-mundo’ para se tornar ‘salvação neste
mundo’” (p.26).
“Ainda que a religião
continue sendo importante para muitos, as grandes questões individuais e
sociais vão ser definidas, a partir de então, sem o recurso à linguagem e à
semântica religiosa” (p.26).
“[...] Segundo, as
transformações culturais do protestantismo afetaram os mais diversos âmbitos –
entre os quais o econômico, o político e o cultural –, com reflexos nas
sociedades ocidentais como um todo” (p.27).
“Hoje não precisamos
que ninguém nos convença de nada. Simplesmente somos reprovados nos exames
escolares se não formos disciplinados no estudo ou somos despedidos se não nos
mostrarmos disciplinados no trabalho. Ou seja, o que antes o protestantismo
defendia sob a forma de princípios religiosos hoje nos é imposto pela força das
práticas, com seus prêmios e castigos, das instituições mais importantes em
nossa vida” (p.27).
“É crucial, portanto,
entender como essas ideias se tornam um imperativo prático do funcionamento
corriqueiro das instituições, ou seja, como antigas ideias se tornam tijolo,
cimento, exame de escola e contrato de trabalho” (p.27).
“A revolução de
consciências protestante vira de ponta-cabeça o imaginário social. O trabalho
produtivo e cotidiano torna-se o suporte tanto da autoestima como do
reconhecimento e respeito social do indivíduo” (p.28).
“Se a fonte moral do
protestantismo é religiosa e divina, a fonte moral do utilitarismo é secular e
laica, guiada pela noção de bem comum” (p.29).
“Ser ‘racional’ passa ser definido pela
capacidade de autocontrole e de disciplina das paixões e inclinações naturais
do corpo, em nome de um objetivo externo ao indivíduo” (p.30).
“Os seres humanos, que
antes buscavam a justificação de suas ações na mensagem religiosa, agora passam
a se definir a partir de sua capacidade de autocontrole como um fim em si
mesmo” (p.30).
“Se inicialmente apenas
a burguesia, a caminho de se tornar a classe social dominante, apropriou-se do
discurso do trabalho útil para o bem comum a fim de deslegitimar o discurso
tradicional da nobreza, logo a situação muda. Também as classes trabalhadoras
passam a exigir sua inclusão econômica e política, e pelas mesmas razões que a
burguesia evocara contra a nobreza” (p.31).
“Essa luta se deu em
etapas. O reconhecimento da contribuição dos trabalhadores abriu o caminho para
a participação em igualdade de condições [...] o direito ao voto era reservado
aos detentores de renda, ou seja, aos burgueses. Foi o paulatino reconhecimento
da contribuição econômica da classe trabalhadora que levou à vitória do
sufrágio universal nos principais países capitalistas” (p.31).
“[...] Uma vez que
todos podem trabalhar, todos podem ser valorizados por sua contribuição à
sociedade, e não apenas os filhos das famílias nobres que monopolizavam a ideia
aristocrática de honra com base na linhagem de sangue” (P.31).
“Aí está a importância
de uma compreensão adequada dessas hierarquias morais, que tendemos a
naturalizar e achar inatas[...] E elas decorrem de fatos históricos, que
explicam a origem e a causa de tudo o que valorizamos e consideramos digno de
luta e defesa – como, por exemplo, a própria ideia de democracia e de direitos
individuais universais” (p.31-32).
“Tudo o que existe são
‘coisas’, que podem ser compradas e tocadas com as mãos. O mundo simbólico em
todas as suas dimensões permanece irrefletido, e apenas os desejos e as
justificativas da existência cotidiana ocupam o espaço possível do pensamento”
(p.32).
“Compreender o mundo em
sua complexidade simbólica e moral não é, portanto, apenas um desafio
intelectual. Antes de tudo, é um desafio emocional, pois rompe com certezas
tranquilizadoras, baseadas na repetição de chavões e clichês” (p.33).
“Desta também depende o
valor relativo que atribuímos aos outros, por exemplo, como pessoas a serem
evitadas na rua ou que merecem apenas um contato superficial e breve, em
contraposição àquelas com as quais forjamos amizades duradouras ou até
casamentos” (P.33).
A INVENÇÃO HISTÓRICA DO “SER HUMANO
SENSÍVEL”
“Além
de produtivo, todo ser humano “deve” ser, também, consciente dos sentimentos e
emoções que o tornam diferente dos outros. Ser autêntico é ter a capacidade de
conhecer a si mesmo e ter a coragem de ser o que se é” (p.34).
“Antes tidas como
perigosas e incontroláveis, as paixões são renomeadas como sentimentos e
elevadas a um patamar no qual unem, e não mais separam corpo e espírito. Com a
revolução expressiva, os seres humanos se definem não só pelo trabalho que
fazem, mas também pela autenticidade de sua vida sentimental” (p.34-35).
“[...]A vida ‘bem
vivida’ deve ter o complemento de uma vida emocional e sentimental rica que é
sempre, ou deve ser, única e intransferível” (p.35).
“Em decorrência das
revoluções protestante e expressiva, todos os indivíduos de todas as classes
sociais vão definir o êxito ou o fracasso relativos de suas vidas com base não
apenas no âmbito do trabalho, mas também no âmbito afetivo” (P.35).
“[...] a necessidade
interna, inerente a todos os seres humanos de todas as épocas, foi percebida
por essas elites intelectuais como uma interpretação amesquinhada e superficial
por se restringir apenas ao trabalho produtivo” (P.36).
“Já
a ética da autenticidade e do expressivismo defendem que o indivíduo e a vida
humana são – ou devem ser – mais do que a reprodução de um animal que trabalha
para sobreviver materialmente” (P.36).
“Em grande medida,
formamos a nossa autoimagem em função da forma como os outros nos percebem. Por
isso é crucial a dimensão simbólica e moral. Ela pode nos humilhar e anular
nossa capacidade de ação no mundo ou pode nos fortalecer e nos tornar ativos e
autoconfiantes” (P.37).
“O pensador alemão Max
Weber argumentou que a noção de indivíduo no protestantismo ascético simboliza
a ideia de um “instrumento divino”, visando a maior glória de Deus na terra.
Por outro lado, a versão emotiva se ligaria à ideia do indivíduo que traria a
divindade dentro de si, com algo “interior” ao sujeito” (P.38).
“[...] as ideias
simbólicas e culturais, com sua história peculiar, constituem a base de nosso
comportamento prático, quase sempre sem que tenhamos consciência disso. Aliás,
quanto menor a consciência do público, tanto maior a eficácia manipulativa
[...]” (p.40).
“Os mitos nacionais
existem para tornar invisível essa realidade simbólica e distorcer a
necessidade pública e privada de compreensão das questões existenciais e
políticas” (p.40).
“A reconstrução da
dimensão cultural e simbólica aqui proposta parte da desconstrução e crítica
desses engodos manipulativos, de modo que possamos perceber a eficácia prática
das ideias que determinam nosso comportamento. Sem distorcer o mundo social, as
classes dirigentes não podem fazer o trabalho sujo de se apropriar da riqueza
social” (P.40).
“É isso que permite que
possamos aprender desde que nos interroguemos acerca das ideias que influenciam
nosso comportamento real e cotidiano” (P.41).
“[...] O capitalismo
não pode ser compreendido apenas por sua dimensão econômica, enquanto fluxo de
capital e troca de mercadorias, mas também como uma dimensão simbólica, moral e
cultural comum” (P.41).
“A própria noção de
amor moderno, como base da família e de uma vida sentimental estável, foi
criada pelo expressivismo e pelo romantismo do final do século XVIII. Ela está
no cerne da ética da autenticidade. É aqui que a mulher, pela primeira vez,
deixa de ser vista como ser humano de segunda classe e, portanto, de estar
submetida aos homens e aos costumes [...]” (p.42).
“Assim, a própria ideia
de que a mulher deve ser conquistada, e não simplesmente arrebatada com
violência, é recente e fruto da revolução expressiva nas elites artísticas e
intelectuais, um processo que tem início no século XVIII e demora a se impor
para o resto da população. A necessidade da conquista amorosa [...] cria um
novo mundo, o da ‘esfera erótica’, em parte independente das outras esferas da
vida e com regras próprias” (p.42).
“Depois dessa invenção
cultural e histórica, quer ela seja vivida como ilusão ou realidade, nenhum de
nós deixa de sentir o aguilhão do desafio que nos é imposto: uma vida sem amor
não passa de uma subvida” (p.43).
“Desde o século XVIII,
essa revolução expressiva vem se expandindo paulatinamente para todas as
classes e todo o mundo [...]Surge assim uma poderosa indústria para ensinar o
que é e como se conquista a felicidade que vislumbramos no amor” (p.43).
“Não apenas a percepção
do amor e da vida familiar sofreu uma mudança drástica por causa do
expressivismo. A própria ideia de trabalho produtivo também mudou. No século
XVIII começam as críticas ao trabalho igual e repetitivo, como sendo indigno da
grandeza humana” (p.43).
“É então que o
capitalismo se dá conta de que gerou seu maior inimigo. Não mais a União
Soviética, tão produtivista quanto o próprio capitalismo, mas o inimigo em
casa, os filhos que se revoltam contra o mundo bem-comportado, baseado na
mesmice e na tradição acrítica representada pelas gerações mais velhas” (p.44).
“As ideias de trabalho
com sentido e de vida amorosa feliz e completa se disseminaram para todas as
classes sociais, mas é na classe média, como veremos nas trajetórias de vida na
parte final deste livro, que vamos encontrá-las em sua maior diversidade,
profundidade e força” (p.45).
“Em nenhuma classe
social este dilema é mais acentuado do que na classe média. Afinal, ela é a
classe do expressivismo e da ética da autenticidade, seja na esfera do
trabalho, seja na esfera íntima das emoções e dos desejos” (p.46).
“Ela permite também
desmascarar e denunciar os usos perversos do desconhecimento de um público
indefeso, usos que promovem interpretações cuja única razão de ser é a
legitimação de privilégios injustos [...] Perceber como o mundo social funciona
de fato é o maior desafio para uma vida com sentido, autonomia e direção
própria” (p.46).
APRENDIZADO MORAL E JUSTIFICAÇÃO DE
PRIVILÉGIOS
“[...] reconhecimento das fontes morais que
nos guiam seja na vida pública seja no âmbito mais íntimo é, portanto, um passo
decisivo para nossa autocompreensão. Como não costumamos ter consciência desses
fatores morais, esse reconhecimento muda, de forma radical, o modo como
percebemos a vida privada e pública” (p. 47).
“Ali onde o dinheiro
parece mandar em tudo, como no Brasil e nos Estados Unidos, isso também foi
resultado de luta política, dessa vez decidida, sem compromissos, pelas classes
dominantes, ou seja, pelos proprietários que impõem sua moeda – o dinheiro –
como supremo valor social” (p.47-48).
“Os donos do dinheiro e
do poder não podem simplesmente dizer ao restante da sociedade: “Nosso intuito
é deixar todos vocês, otários, sem propriedade e sem poder, apenas com a roupa
do corpo, trabalhando nas condições mais favoráveis para mim.” Não é assim que
acontece. Caso contrário, teríamos revolta e revolução” (p. 48).
“[...] vamos examinar o
conflito entre, de um lado, a dimensão moral e instrumental e, de outro, a
dignidade do produtor útil” (p. 50).
“A fonte moral de todo
amor-próprio, prestígio social e reconhecimento individual – sem os quais
ficamos doentes e somos apenas uma sombra de nós mesmos – passa a ser referida
ao trabalho que todos podem realizar” (p. 50).
“[...] a dimensão
instrumental, sua irmã siamesa, coloca-se de duas maneiras distintas. Primeiro
aos poucos vai ficando evidente que nem todo trabalho tem o mesmo valor. A
quantidade e o tipo específico de conhecimento incorporado pelo trabalhador vão
criar, também nesta dimensão, distinções sociais” (p. 50-51).
“[...] na própria dimensão
da dignidade do trabalho útil, potencialmente universalizável para todos que
trabalham e contribuem para a vida social, passam a existir gradações e
hierarquias conforme o tipo de trabalho e o tipo de desempenho” (p. 51).
“O ordenamento jurídico
e formal que assegura a igualdade, ainda que imperfeito, tem como alicerce
consensos valorativos construídos ao longo da história. Nele se articula um
compromisso entre as classes sociais, segundo o qual todos os indivíduos de
qualquer classe devem desfrutar de um nível mínimo de respeitabilidade – e de
reconhecimento de suas necessidades sociais, econômicas e políticas” (p. 52).
“Nesses países mais
avançados no sentido moral e político, a desigualdade entre classes superiores
e classes populares se manifesta de forma mais clara por meio da distinção
estética” (p. 52).
“[...] A classe do
privilégio pode se reconhecer facilmente na rua ou num evento social,
constituindo uma espécie distante e, sobretudo, superior de ser humano” (p.
53).
“As amizades, os
casamentos – 99% das pessoas casam dentro de sua classe social –, os
relacionamentos pessoais e de negócio, tudo será facilitado pela percepção
imediata do compartilhamento de um mesmo estilo de vida, baseado num gosto
comum” (p. 53).
“A classe média
brasileira não se comove com a morte ou mesmo o massacre de milhares de pobres,
os quais são vistos como “gente inferior”. Mas se comove muito com o drama
humano de um único indivíduo de sua classe, quando é sequestrado ou morto” (p.
54).
“É assim que o mundo
social se mantém desigual apesar da pretensão formal de igualdade jurídica
entre as pessoas. É assim que o pertencimento de classe efetivamente atua em
nosso cotidiano. E isso acontece em todas as atuais sociedades capitalistas,
seja na periferia do sistema, como no México e no Brasil, seja no centro, como
nos Estados Unidos e na França” (p. 54).
“Quando um privilegiado
põe na mesa um vinho especial de 20 mil ou de 50 mil reais, não está apenas
exibindo o seu dinheiro. O que lhe importa é provocar nos outros e em si mesmo
a sensação de que possui bom gosto, percepção sofisticada e sensibilidade
“inata” ” (p. 55).
“O decisivo aqui é
constatar a forma pela qual se dá a legitimação e justificação dos privilégios
injustos da classe média e da elite em detrimento das classes populares, seja
dos trabalhadores, seja dos marginalizados. A “superioridade” das classes do
privilégio positivo, herdada do berço, não precisa estar escrita na lei
jurídica, pois está inscrita em nosso comportamento prático corriqueiro” (p.
56).
“Assim, o sonho de toda
criança das classes marginalizadas é ter um tênis Nike ou um iPhone, produtos
corriqueiros entre os filhos da classe média real. As classes subalternas já se
percebem como inferiores por não terem acesso aos mesmos símbolos de status e de
bom gosto” (p. 56).
“[...] é o conhecimento
incorporado no próprio trabalhador que determina, em grande medida, a maior ou
menor produtividade do trabalho” (p. 58).
“Ao contrário do
escravismo, por exemplo, o capitalismo não explora a mera energia muscular do
trabalhador, e sim o conhecimento incorporado que o capacita, por exemplo, a
operar máquinas complexas” (p. 58).
“Ainda que o
conhecimento da classe média real seja mais valorizado – em função de sua
escassez e do tempo livre requerido para sua incorporação, um privilégio das
classes médias que podem dispor do tempo livre dos filhos e de boas escolas
[...]” (p. 59).
“Como o bom
aproveitamento escolar exige pressupostos normalmente invisíveis – como
atenção, foco, concentração, disciplina, autocontrole, [...], os filhos da
classe média já entram como vencedores no sistema escolar, ao passo que os
filhos da classe dos marginalizados [...] chegam como perdedores em tenra
idade” (p. 59).
“A exploração econômica
do trabalho barato permite à classe média não só “roubar” o tempo da “ralé de
novos escravos” – ocupados nas funções repetitivas e desgastantes do serviço
doméstico [...], como usá-lo depois em tarefas mais bem pagas em benefício
próprio” (p. 60).
“Os privilégios de uma
classe condenam a outra à precariedade eterna, já que não lhe sobra tempo para
nada. Enquanto isso, a classe opressora tem cada vez mais oportunidades de
avançar e obter conhecimento e riqueza” (p. 60).
“Com o tempo, o
exercício da humilhação se torna prazeroso, multiplicando-se sob as formas da
piada suja, do chiste aparentemente apenas de brincadeira, do insulto direto,
do preconceito de classe e de raça e, não menos importante, do abuso” (p.
60-61).
“A classe média
brasileira herda o abuso e o sadismo de seus avós, e um dos motivos para isso é
que nossa inteligência cooptada e colonizada nem sequer percebe a escravidão
como a nossa semente social mais importante” (p. 61).
“A inclusão dos
humilhados sempre é uma decisão política e moral, e nunca consequência apenas
do desenvolvimento econômico, como se comprova no Brasil. Entre nós, a elite e
a classe média preferem ignorar essa situação secular e continuar explorando e
humilhando os mais frágeis” (p. 61).
“A causa de todos os
golpes de Estado, em especial o de 2016, nunca teve nada a ver com a corrupção.
Por que apenas a suposta corrupção petista incomoda a classe média, e não a dos
outros partidos, mesmo quando comprovada em gravações exibidas na TV? Alguém
viu a classe média em massa nas ruas, protestando contra a corrupção de partidos
de elite?” (p. 61).
“Um dos objetivos
centrais deste livro será precisamente explicar o que incomoda de verdade a
classe média. [...] Agora vamos demonstrar o que afasta a nossa das classes
médias em países moral e politicamente mais desenvolvido” (p. 62).
“Para começar, a
singularidade de cada país não se deve, como pensamos até hoje, a heranças
malditas [...] Afinal, a tradição não se transmite pelo sangue, pelo ar nem por
picada de mosquito. São instituições concretas – a família, a escola, o
trabalho, etc. – que nos fazem o que somos” (p. 62).
“Todas as questões
centrais do desenvolvimento econômico, político e social brasileiro têm origem
nessa distância e nessa marginalização gigantesca, e nada têm a ver com as
balelas e mentiras de patrimonialismo, jeitinho brasileiro e povo corrupto ou
preguiçoso” (p. 62-63).
A CONSTRUÇÃO DA CLASSE MÉDIA BRASILEIRA
A GÊNESE DA CLASSE MÉDIA BRASILEIRA
“Como a instituição da
escravidão e do escravismo é a base econômica do sistema capitalista mercantil
colonial, os homens livres, apesar de seu número expressivo [...] não têm lugar
no sistema produtivo principal” (p.65).
“Assim se constitui
entre nós – como forma econômica, política e social – a figura do ‘agregad’o
[...] o agregado vai formar a primeira classe intermediária entre proprietários
e despossuídos [...] Vários dentre eles vão se juntar aos -escravos,
abandonados pela ‘abolição’ meramente formal, e constituir uma das maiores
classes sociais do Brasil moderno: a ralé estrutural de despossuídos e
abandonados”(p.65-66).
“[...] o escritor
Graciliano Ramos quem melhor tenha compreendido essa dinâmica social e seus
reflexos nos indivíduos. O romance São
Bernardo mostra, de forma magistral, o processo de desumanização que um
agregado que se torna proprietário de terras tem que realizar num contexto
marcado pelo arbítrio e a violência. O assassinato como meio de resolução de
conflitos, o definhamento de toda dimensão afetiva e sentimental são o
corolário do homem de sucesso nesse ambiente”(p.66).
“As formas mais comuns
de agregado serão o tropeiro, o sitiante, o vendeiro e, acima de tudo, o
‘cabra’, o braço armado do patrão, disposto a matar ou morrer por ele” (p.66).
“Mas a ilusão de
liberdade vale muito – na ausência de outra opção, resta a fantasia – e ainda
permite aliviar o desgaste do arbítrio e da autoridade aberta” (p.67).
“O pressuposto do
acordo de cavalheiros entre o senhor e o dependente é que escravo trabalha para
ambos [...] Fundamental porque irá perdurar como o nó górdio das relações entre
as classes no Brasil desde então: a preservação da distância social de todas as
classes em relação aos escravos assegura um espaço de distinção social [...]”
(p.67).
“Essa relação vai se
perpetuar no Brasil dos séculos seguintes em relação aos abandonados e
marginalizados, ou seja, os atuais descendentes dos ex-escravos de qualquer cor
de pele, embora a maioria continue sendo negra, mesmo depois da abolição formal
da escravidão [...]” (p.67).
“Este é um ponto
crucial das relações de classe no Brasil: os escravos, e depois seus
descendentes, formando um exército de humilhados e esquecidos de todas as
cores, vão se tornar uma espécie de casta dos intocáveis, tal como na Índia. A
função da casta inferior na Índia – os ‘intocáveis’, no sentido de que qualquer
contato físico com eles contaminaria a pureza relativa das castas superiores
[...]” (p.67).
“Essa situação se
mantém ao longo do tempo como a característica mais relevante da sociedade
brasileira e, mesmo quando esta se moderniza, vai marcar profundamente os
estratos médios, o nosso tema neste livro [...]” (p.68).
“Ao contrário da
colonização norte-americana, feita em grande medida por pequenos e médios
proprietários de terra, no Brasil a colonização se deu por meio do latifúndio
sem lei – na verdade, sua única lei é a do mais forte e do mais inescrupuloso
–, que subordina e comanda toda a realidade social. Essa é a real e principal
diferença entre a história social desses dois países [...]” (p.68).
“No caso brasileiro,
sem a pressão de uma comunidade maior composta pelo conjunto de iguais em
termos econômicos e sociais, o arbítrio e a violência aberta dos donos de terra
e gente são o único critério que conta” (p.68).
“Essa é uma realidade
que até hoje caracteriza as relações nas áreas rurais do Brasil, com o mesmo
tipo de gente prestando-se a fazer o mesmo tipo de trabalho sujo. É na cidade
que outra modalidade de trabalho sujo, o da dominação social urbana e despótica,
vai assumir novas formas” (p.69).
O CAMPO NA CIDADE
“A mudança do campo
para a cidade, que já se prenuncia com a passagem, em termos de dinamismo
econômico, da agricultura de exportação para a mineração na segunda metade do
século XVIII, ao contrário, já contempla inovações importantes para o nosso
tema” (p.70).
“O processo de
urbanização transforma a realidade material e simbólica das pessoas e cria
necessidades que não existiam no meio rural [...] Mas isto só vai ocorrer no
princípio do século XX e muito concentrado de início na cidade de São Paulo”
(p.70).
“Mesmo assim, já com o
advento da mineração e, sobretudo, com as duas novidades associadas à vinda da
Família Real portuguesa ao Brasil em 1808 – a data de nascimento do Brasil
moderno –, notam-se mudanças sociais de vulto na sociedade brasileira. Essas
duas transformações são a abertura dos portos e a transplantação do aparato do
Estado português de Lisboa para o Rio de Janeiro” (p.70-71).
“A abertura dos portos
significou, na realidade, a introdução da lógica das trocas mercantis nas
grandes cidades brasileiras, marcadamente no Rio de Janeiro, como capital do
novo reino, mas também em Recife e Salvador” (p.71).
“[...] A vinda da
Família Real, por sua vez, se deu com a transplantação de parte do Erário
português e de milhares de funcionários e burocratas encarregados de refundar o
novo Estado nos trópicos” (p.71).
“Chegam alemães da
Bavária para produzir as primeiras cervejas brasileiras; franceses para vender
roupas e badulaques para as jovens e senhoras; e chegam, sobretudo, ingleses,
trazendo até as primeiras máquinas, viabilizando manufaturas e oficinas
voltadas para o reparo e a produção de um sem-número de itens” (p.71).
“A chegada de uma nova
burocracia real cria não só demandas de mercado, mas também aumenta a
complexidade da sociedade como um todo. Bancos estatais abrem espaço para um
adensamento da economia monetária e do fluxo de capitais e mercadorias” (p.72).
“Ainda que as mudanças
não alcancem o interior, nas cidades litorâneas são evidentes as alterações no
modo de vida. A influência europeizante passa a marcar o ambiente urbano,
revolucionando tanto a vida produtiva e cotidiana quanto o gosto estético e os
padrões de moralidade” (p.72).
“Afinal, o capitalismo
não implica apenas a valorização do capital econômico. O próprio dinamismo da
atividade econômica no capitalismo depende do aproveitamento sistemático da
técnica e da ciência, ou seja, do conhecimento. É isso que torna o capitalismo
dinâmico e produtivo” (p.73).
“A classe que vai se apropriar
desse recurso fundamental, como base de sua reprodução social, é precisamente a
classe média” (p.73).
“[...] O que o
capitalismo explora no trabalhador é, antes de tudo, o conhecimento incorporado
por ele, e não apenas sua energia muscular. É desse contexto que, mais tarde
entre nós, vai sair uma das novas classes sociais resultantes do capitalismo já
industrial: a classe trabalhadora” (p.74).
“Como grande parte
dessa classe marginalizada será negra ou mestiça, a continuidade do preconceito
contra o escravo vai se dar sobretudo nesse segmento das classes populares. Não
só as camadas ‘superiores’, mas a própria classe trabalhadora, bem como a
‘massa’ da baixa classe média, vai procurar de todos os modos se afastar e se
distinguir da ralé de novos escravos” (p.74).
“As duas grandes
batalhas políticas desse período, a Abolição da escravatura eo advento da
República, já são levadas a cabo em grande medida como uma luta pela hegemonia
da opinião pública nos maiores centros urbanos” (p.76).
“Esse é um fio condutor
fundamental, o da batalha das ideias que lutam pela hegemonia na sociedade, que
vamos retomar adiante. Antes, temos que compreender a inflexão que a Abolição
significou do ponto de vista social e econômico” (p.76).
O ADVENTO DO CAPITALISMO INDUSTRIAL
“A Abolição representa
uma transição fundamental. Abre-se com a emancipação dos escravos [...] caminho
para o desenvolvimento capitalista enquanto tal. O trabalho livre permite a
formação de um mercado interno capitalista que antes só existia de modo
incipiente nas cidades litorâneas” (p.77).
“O negro e seus
descendentes vão se somar, então, aos esquecidos e humilhados de todas as cores
e formar uma classe específica que se desenvolve no capitalismo da periferia: o
que chamo de ‘ralé brasileira’ (p.78)”.
“[...] Os mecanismos
simbólicos de distinção social são tão importantes quanto os estímulos
econômicos. Por isso, qualquer ajuda a essa classe vai ser bloqueada pelas
classes privilegiadas, como mostram os recorrentes golpes de Estado” (p.78).
“Ainda que as pessoas
não sejam mais separadas pela cor da pele desde o berço para serem senhores ou
escravos, elas são separadas por processos invisíveis que produzem efeitos
semelhantes” (p.78).
“[...] esses excluídos
e marginalizados podem ser assassinados,
por exemplo, sem que isso cause comoção pública. Ainda que a ralé seja a mais
atingida por este mecanismo de desumanização, o mesmo ocorre, em gradações
diferentes, com todas as classes populares que realizam trabalho
semiqualificado, ou seja, com a maioria da população” (p.79).
“A herança da
escravidão não irá contaminar apenas a ralé, negra e mestiça, mas todas as
classes populares. E isto é decisivo para se entender a posição e atitude das
frações da classe média em relação às classes populares. Assim, a gênese do
capitalismo entre nós desde o início carrega seu segredo e sua mácula”
(p.79-80).
“Os ex-escravos também
continuam marginalizados, de forma aberta ou velada, como prestadores de
serviços pessoais. As classes modernas do capitalismo [...] são formadas pelos
recém-chegados imigrantes. A outra classe moderna do capitalismo, a classe
média, apresenta uma composição de origem variada, com prevalência do
componente nativo, sobretudo os filhos da alta classe média de profissionais
liberais” (p.80)
“[...] é verdade que a
passagem do artesanato para a manufatura, e daí para a grande produção
industrial, não se reproduz no Brasil tal como no capitalismo clássico de
outros países. Aqui o capitalismo se desenvolve entre 1890 e 1930, já à sombra
do grande capital comercial e financeiro, constituído na esteira da valorização
do café no mercado internacional” (p.81-82).
“Em condições
favoráveis, teria sido possível uma direção própria da sociedade a partir das
necessidades do capital industrial instalado. No entanto, desde essa época, o
industrialismo brasileiro procura se acomodar com a elite agrária e
comercial/financeira dominante” (p.82-83).
“Em todos os grandes
embates políticos nos 100 anos seguintes, nota-se o peso dessa origem
politicamente subordinada da fração industrial do capital. Em todos os golpes
de Estado, como os de 1954 (frustrado em suas últimas consequências pelo
suicídio de Vargas), de 1964 e de 2016, foi uma política de esquerda, realizada
em nome do capital industrial, que redundou ao fim em união de toda a classe
proprietária [...]” (p.83-84).
“Num país tão populoso
quanto o Brasil, apenas o desenvolvimento industrial poderia proporcionar
empregos mais qualificados e bem-remunerados e a formação de um mercado interno
forte e dinâmico [...] Mas os custos sociais disso são elevadíssimos” (p.84).
“Uma industrialização
mais autônoma e nacional permitiria uma articulação com as massas
trabalhadoras, as quais também se beneficiariam com o processo[...]Entre nós,
porém, a fragilidade e a visão míope da classe industrial levaram essa fração a
sempre tomar o partido da classe proprietária enquanto tal, mesmo objetivamente
contra seus interesses, sufocando assim qualquer veleidade de ascensão das
classes populares” (p.84).
“Desde o início do
século XX, quando começa a se formar esta constelação de classes, a alta classe
média se alia às frações anti-industriais, representadas pela elite agrária e
pelo capital comercial-financeiro exportador e importador” (p.85).
“Todavia, era na massa
da baixa classe média e da incipiente classe operária que a inflação,
decorrente das constantes emissões de moeda para pagar os empréstimos
estrangeiros – uma vez que o governo não tinha força para tributar os
latifundiários –, que a situação econômica se tornou premente” (p.86).
“A alta classe média e,
em menor grau, a massa da baixa e média classe média têm interesse na
manutenção da hierarquia do capitalismo que as privilegia como classes do
trabalho não manual e relativamente mais prestigioso e valorizado. São as
classes da educação e do conhecimento” (p.86).
“A capacidade de
organização das classes populares e trabalhadoras sempre fora reprimida com
violência e falta de escrúpulos pela elite dirigente [...] a elite nativa
reagiu às primeiras manifestações de organização do protesto popular com as
mesmas armas” (p.86).
“A primeira grande
greve geral de trabalhadores de São Paulo, liderada por trabalhadores e
trabalhadoras com passado anarco-sindicalista nos países de origem, a grande
greve de 1917, terminou em banho de sangue e na traição de todos os acordos
assinados por parte dos patrões” (p.86).
“[...] No entanto, logo
depois da assinatura do acordo, publicado em vários jornais para garantir seu
cumprimento, encerrando a greve afinal vitoriosa para os trabalhadores, os patrões
promoveram uma feroz repressão e perseguição dos líderes do movimento” (p.87).
“Alguns são
assassinados ou deportados, enquanto a maioria é mandada presa ao Amapá, onde
grassava uma epidemia de malária, para morrerem sem cuidados. Essa era a forma
como a elite lidava [...] com os movimentos populares e de trabalhadores”
(p.87).
“A chamada Revolução de
30 é, portanto, o resultado de uma bem urdida articulação entre, de um lado, as
elites subalternas ao arranjo agrário-comercial paulista e, de outro, os tenentes,
como expressão militar do descontentamento difuso que grassava na massa da
classe média que se formava sob o influxo do capitalismo industrial” (p.88).
“É interessante notar
que a conjuntura de 1930 se manteve, em seus traços mais gerais, pelos quase
100 anos seguintes, o que ajuda a esclarecer os momentos históricos que
chegaram ao ponto de ebulição em 1954, em 1964 e em 2016” (p.88).
“Na dimensão ideológica
temos, também, a partir da década de 1930, a formação dos ideários e concepções
de mundo de grande influência nas classes e nos indivíduos que até hoje
demarcam o nosso horizonte mental. Cabe lembrar que o Brasil enquanto tal –
como uma ideia totalizante e com um projeto coletivo articulado e inclusivo –
simplesmente não existia antes de 1930” (p.89).
“A fragilidade relativa
das classes populares, massacradas e reprimidas como sempre, impedia que
pudessem elaborar intelectualmente uma interpretação alternativa e viável da
sociedade” (p.90).
“Mais uma vez, na
ciência e na política, a repetição é tão importante quanto na música: todo o
nosso comportamento está baseado em ideias, quer saibamos disso ou não. E, se
não sabemos, não há como nos defender dessas ideias que influem em nossos atos,
por vezes até em sentido oposto aos nossos interesses” (p.90).
“Essa mesma década é
marcada por intensa agitação na esfera intelectual e cultural, com esforços
para dar conta desse novo desafio: pensar e interpretar o novo Brasil que então
se delineava” (p.90).
A CONSTRUÇÃO DOS PROJETOS NACIONAIS: UM
MAIS INCLUSIVO E O OUTRO EXCLUDENTE
“Afinal, que país era
esse que estava sendo construído?” (p.91).
“[...] o divisor de
águas para a sociedade brasileira desde então, vai ser a questão da inclusão ou
da exclusão das classes populares no processo de desenvolvimento capitalista.
Tudo o que importa gira em torno dessa escolha fundamental, que vai dividir a
sociedade e os espíritos” (p.91).
“Os temas centrais – o
desenvolvimento deve ser impulsionado pela indústria ou pela agricultura (a
“vocação agrária”), o grau de maior ou menor inclusividade do sistema político
– derivam dessa questão básica” (p.91-92).
“Míopes são aqueles que
consideram apenas o racismo mais visível, em função da cor da pele, pois não
conseguem perceber os outros racismos, que se manifestam de modo mais sutil e
mais subliminar” (p.92).
“[...] Num contexto de
racismo explícito, marcado pela concepção de branqueamento da população, o fato
de reconhecer que o povo brasileiro é mestiço, e de ver isso como valor
positivo, foi revolucionário” (p.93).
“Para a elite, pretos e
mestiços, supostamente indolentes, deveriam desaparecer e dar lugar a brancos
de origem europeia. Para uma elite que preferia – e ainda prefere – tornar
invisível o povo brasileiro, dizer quem era realmente o povo e, ainda por cima,
anunciar que isso não era nenhum problema foi obviamente um enorme avanço”
(p.93).
“Vargas reconhece o
potencial aglutinador dessa mensagem e ressalta o seu conteúdo inclusivo– do
povo, da massa da baixa e média classe média e das classes populares que apoiavam
seu governo [...] O governo Vargas passa, portanto, a celebrar a mestiçagem, o
que é revolucionário para o espírito reacionário e abertamente racista da
época” (p.93).
“Além disso, a
sociedade brasileira não apenas se industrializava e se urbanizava. Esses dois
elementos combinados introduziram também a ‘sociedade de massas’” (p.93).
“O futebol, antes
restrito à elite, passa a ser reconhecido como esporte nacional e tem, nessa
época, seu primeiro grande ídolo nacional em Leônidas da Silva, o ‘Diamante Negro’,
um negro, portanto” (p.94).
“Diante disso, como
reage a velha elite que comandava a República Velha [...] sem o poder de Estado
e sem a hegemonia ideológica sobre a sociedade? De início, reage como sempre.
Tenta a saída militar e fracassa” (p.94).
“O instrumento dessa
elite do atraso será a Universidade de São Paulo, a USP, fruto de seu dinheiro
e de seu prestígio, que vai se tornar o think
tank do liberalismo ‘vira-lata’ brasileiro” (p.94).
“Aqui é o lugar para
desfazer possíveis mal-entendidos. Quando situo em São
Paulo a matriz da “elite do atraso”,
refiro-me à elite regional que, por sua força relativa, vai acabar comandando o
país todo, tanto na dimensão material quanto na simbólica” (p.94).
“Dito isto, é inegável
que a USP foi a ponta de lança de um esquema de poder elitista que resultou na
elaboração da ideologia hegemônica do liberalismo vira-lata brasileiro” (p.95).
“Estamos aqui na
dimensão do mito nacional, ou seja, de um conto de fadas para adultos com o
intuito de explicar aos leigos como funciona a sociedade. É a luta pela
conquista do mito nacional hegemônico que permite colonizar a cabeça da
população como um todo em benefício de uma pequena elite” (p.95).
“A questão para a elite
afastada do poder era, portanto, assegurar que a rebeldia da classe média nunca
mais se manifestasse espontaneamente e sem controle, como se deu no apoio a
Vargas” (p.96).
“A elite precisa da
lealdade da classe média, pois esta é que representa os interesses da restrita
elite de proprietários, seja no mercado, no Estado ou na esfera pública”
(p.96).
“Por conta disso, a
estratégia da elite em relação à classe média foi recorrer ao uso da violência
simbólica, e não da violência material, como fazia no caso das classes
populares. A violência simbólica é aquela que não parece violência, que se
vende como convencimento, mas que, na verdade, retira a possibilidade de
reflexão e, portanto, de qualquer autonomia da vontade” (p.96).
“Que ideias são essas
tão eficazes e insidiosas que iludiram e ainda iludem tanta gente boa? Para
compreendê-las precisamos examinar primeiro a ‘santíssima trindade’ do
liberalismo vira-lata brasileiro, hoje hegemônico na direita e na esquerda. As
figuras principais aqui são Sérgio Buarque de Holanda, o filósofo da santíssima
trindade, posto que foi o criador das noções mais abstratas que estão hoje na
cabeça de todo brasileiro, como personalismo, jeitinho, patrimonialismo,
cordialidade, etc” (p.97).
“[...] As falcatruas e
roubalheiras do capitalismo financeiro americano, comprovadas na crise de 2008
e que continuam até hoje – nos balanços mascarados de empresas, no engodo de
clientes, na sonegação de impostos em escala planetária –, tudo isso foi
certamente obra de um brasileiro cordial que inoculou o veneno da corrupção
nessas almas tão honestas e puras” (p.98).
“O ponto de inflexão no
desenvolvimento do capitalismo americano é marcado pela Guerra de Secessão
(1861-1865). A formação de um capitalismo que passa do nível local para o
âmbito nacional significa também um golpe fatal no capitalismo baseado nos
pequenos e médios proprietários” (p.98).
“Por ter sido criado à
sombra do Estado, o Brasil tradicional era elitista, corrupto e sem energia.
[...] O inimigo de toda iniciativa é o Estado, que inocularia o vírus da
desonestidade e da apatia na população” (p.100).
“As lutas por hegemonia
ideológica costumam ser de longa duração. Envolvem um processo de
amadurecimento de ideias e de sua articulação com interesses específicos. A
luta da elite paulista por hegemonia é complexa e passou por várias fases, pois
não é fácil a articulação de interesses herdados do passado [...] Há também o
confronto com as classes populares, que iam se consolidando com o dinamismo do
capitalismo paulista” (p.102).
“A questão aqui não tem
a ver, e nunca teve, com a verdade. Como traço cultural brasileiro, a ideia de
corrupção não passa de um instrumento para dominar e colonizar as pessoas,
garantindo que a inferioridade seja moralizada. Quem é colocado numa posição
moralmente inferior não pode se defender de seu algoz” (p.102).
“A partir daí, 99,9%
dos brasileiros, sejam ou não intelectuais, vão identificar o grande problema
brasileiro como sendo apenas a corrupção no Estado e na política. Não por
acaso, ‘patrimonialismo’ é o termo predileto dos arautos da farsa da Lava Jato
em conluio com a Rede Globo na manipulação do público” (p.102).
“Se o liberalismo
vira-lata tem como função ocultar a rapina da elite de proprietários, no que se
refere à alta classe média e a frações importantes da massa da classe média, o
mito vira-lata permite legitimar os seus privilégios de classe como expressão
de uma suposta superioridade moral inata” (p.103).
“Para a classe média, o
tema da moralidade, que lhe permite se ver como mais virtuosa do que a elite e
o povo, torna-se mais evidente em função da maior ou menor sensibilidade à
questão da corrupção restrita ao Estado. Agora há boas razões para se odiar e
desprezar o povo: afinal, é graças à suposta conivência deste que existem
líderes populistas corruptos e inescrupulosos” (p.104).
“[...] Embora exista
desigualdade em todo o mundo, a singularidade do nosso caso, tão monstruoso,
deve ser buscada em contextos nacionais específicos, criados pela luta de
classes, ou melhor, aqui, pela opressão de classes” (p.104).
“Para o populismo, tudo
o que vem das classes populares é suspeito de manipulação, já que os pobres,
coitadinhos, não frequentaram a USP ou as outras universidades nela inspiradas
e nada entendem do funcionamento do mundo” (p.105).
“Desse modo, a minoria
constituída pela elite e pela alta classe média pode pretender legitimidade
para interromper o jogo democrático toda vez que o populismo tiver conseguido
“iludir” os pobres” (p.105-106).
A OPOSIÇÃO ENTRE MERCADO E ESTADO COMO
EXPRESSÃO DA LUTA DE CLASSES – E A CLASSE MÉDIA COMO FIEL DA BALANÇA
“Após a elite paulista
ser afastada do controle direto do Estado, este passa a ser criminalizado toda
vez que desponta a possibilidade de isso voltar a ocorrer. Como as classes
populares foram massacradas e enganadas e não conseguiram construir um projeto
nacional a partir dos seus próprios interesses, estes serão articulados por
‘interposta pessoa’, nomeadamente pelo Estado interventor” (p.107).
“A criminalização do
Estado, rotulado de patrimonial e corrupto, vai ser, na verdade, o único
discurso das elites na luta pela hegemonia social, tendo como contraponto o
mercado, agora virtuoso e paradisíaco” (p.107).
“Trata-se de um caso
típico de moralização da opressão, quando se retira do adversário de classe,
explorado economicamente, também a própria possibilidade de defesa política e
moral contra a injustiça. Como a imprensa e a maioria dos intelectuais são
cooptados pela elite, esse discurso se tornará, com o tempo, hegemônico”
(p.108).
“O mito paulista, agora
mito nacional, passa a perseguir a eternização da República Velha por outros
meios: mantendo o saque do orçamento público do Estado como banco particular da
elite e mitigando, diminuindo e distorcendo o sentido da soberania popular”
(p.108).
“Esses são os dois
pilares da dominação social da República Velha, os quais desnudam a
continuidade visceral do escravismo. Esse é o projeto elitista do mito paulista
que, transformado em mito nacional, vai desde então impregnar todas as disputas
políticas” (p.108).
“A luta política no
Brasil até hoje obedece, portanto, ao mesmo esquema desde 1930. Há quase um
século, essa é a verdadeira disputa pelo coração e a mente do público, indefeso
diante de uma mídia quase sempre corrupta e venal” (p.108).
“A elite e a alta
classe média vão defender o mercado como única forma de regulação legítima da
vida social. Para tanto, a criminalização do Estado patrimonial serve como uma
luva. Entre nós, a luta de classes assume a forma da preponderância maior ou
menor, seja do mercado, seja do Estado, como agente de regulação das contradições
sociais” (p.109).
“Para os fins deste
livro, vale notar a função de fiel da balança neste processo, uma função desde
o início desempenhada pela classe média, sobretudo pela massa da classe média”
(p.109).
“A alta classe média,
que ocupa os cargos de direção no mercado, no Estado e na esfera pública, vai
tender quase sempre a se alinhar com a elite e seu discurso ao mesmo tempo
pró-mercado e anti-industrial. O anti-industrialismo dessa fração de classe,
que reflete a fragilidade de um industrialismo sem industriais, tem a ver com
sua posição de consumidora de artigos de luxo importados” (p.109).
“O fato de a elite
brasileira nunca ter desenvolvido um projeto nacional que contemplasse a
participação de todos tem seu contraponto de classe na vocação vira-lata da
alta classe média, que considera melhor tudo o que vem de fora” (p.110).
“A elite e a alta
classe média [...] veem-se como integrantes de outro mundo, desvinculado das
circunstâncias concretas que os rodeiam. Daí a espoliação da riqueza coletiva e
a sua acumulação no bolso de poucos [...] A industrialização e a ampliação do
mercado interno são percebidas pela massa da classe média como um caminho
alternativo para o consumo de padrão europeu e norte-americano já alcançado
pela alta classe média” (p.113).
“Parte dessa classe,
portanto, percebe a industrialização como possibilidade de expansão de seu
bem-estar e padrão de consumo” (p.113).
“Entre nós, a
desclassificação, ou marginalização, implica o temor tanto da desumanização nas
relações interpessoais cotidianas como também da perda efetiva de direitos, à
qual o legado da escravidão condena os desclassificados e humilhados” (p.114).
“O que se impõe,
portanto, antes de tudo, é saber quais horizontes são abertos ou fechados pelas
visões de mundo dominantes. Só assim podemos entender por que partidos,
indivíduos e classes sociais agem como agem” (p.116).
“Os temas correlatos –
que começam a ganhar um discurso articulado nesse período – de patrimonialismo,
personalismo, populismo, jeitinho brasileiro, bem como a histeria em relação à
corrupção política – visavam criminalizar o Estado sempre que este se colocasse
como representante de demandas populares” (p.116).
“O surgimento do PT, na
década de 1980, inaugura uma dinâmica nova e importante, mas que será em parte
neutralizada pela absorção, no âmbito do próprio partido, do discurso elitista
do moralismo. Não por acaso o PT nasce como o partido da ‘ética na política’,
com grande penetração na classe média” (p.117).
“O golpe de 1964 é o
resultado de um contexto preparado desde 1954 e adiado por uma década pelo
trauma popular causado pelo suicídio de Getúlio. A tentativa de mobilização de
trabalhadores rurais e urbanos, encampando um projeto nacional-popular
alternativo ao elitista, termina por levar ao fim o breve período de
redemocratização que durou 18 anos, assim como das alianças nele vigentes.
117-118
“Na verdade, na segunda
metade da década de 1950, com Juscelino Kubitscheck, o presidente “bossa nova”,
já se iniciava no Brasil o avanço do capitalismo monopolista da grande
produção, um salto possibilitado pelo investimento estatal do período getulista
nos setores de infraestrutura” (p.118).
“A entrada do Brasil na
fase de produção industrial dos bens de consumo duráveis, cujo ramo mais
visível e importante é o setor automobilístico, se dá em associação subordinada
com o capital estrangeiro das multinacionais. A industrialização sem
industriais se consuma em um capitalismo dependente do capital externo, sem
construção de matriz tecnológica própria, empregando mão de obra barata e com o
mercado interno protegido para alavancar o lucro dos investidores externos”
(p.118).
“A ditadura militar
amplia o poder de intervenção do Estado na economia, como meio de expansão da
infraestrutura num modelo monopolista, reforçando assim a industrialização
dependente e oprimindo as organizações populares e sindicais como forma de
manter os salários baixos” (p.118).
“O crescimento
econômico passa a ser comandado por dois vetores complementares: a introdução
de novos produtos de consumo duráveis, mais caros e destinados ao restrito
mercado interno dos 20% privilegiados; e a exportação de produtos
manufaturados, explorando a mão de obra barata, no contexto restritivo da
divisão de trabalho internacional demarcada pelas grandes multinacionais”
(p.119).
“O novo padrão de
industrialização cria, assim, uma polarização social na qual surgem não só
estilos de vida muito diferenciados, como também mercados distintos, com
serviços e mercadorias de qualidade muito diferente” (p.119-120).
“Na realidade, o que
acontece é a consolidação de um padrão de desigualdade abissal e cruel que
reproduz com outros meios a antiga sociedade escravocrata. Nos dias de hoje, é
óbvio, não se segregam desde o berço e em função da cor da pele aquelas pessoas
destinadas ao cativeiro” (p.120).
“[...] Ainda que a raça
permaneça como indicador importante daqueles que podem ser desprezados e
humilhados impunemente são mecanismos de classe que viabilizam a nova
escravidão e a nova apartheid” (p.120).
“Por toda parte, o
capital econômico é mais exclusivo e restrito a uma pequena elite de
proprietários. O que muda são os impostos pelos quais essa riqueza retorna à
sociedade – e que, no caso do Brasil, sempre foram escandalosamente baixos”
(p.121).
“O acesso privilegiado
ao conhecimento valorizado pressupõe uma renda comparativamente maior da
família, de modo a comprar o tempo livre dos filhos para que eles se dediquem
apenas aos estudos[...]os filhos das classes populares são obrigados desde a
adolescência a estudar e trabalhar para ajudar em casa – obviamente, na imensa
maioria dos casos, acabam não fazendo bem nem uma coisa nem outra” (p.121-122).
“A compra do tempo
livre dos filhos está longe de ser o único privilégio positivo da classe média
a ser contraposto aos privilégios negativos das classes populares [...]A
capacidade de concentração, a percepção da leitura como atividade a ser
estimulada, a autodisciplina e o autocontrole [...]tudo isso é repassado aos
filhos da classe média de forma imperceptível, como produto da mera
socialização familiar” (p.122).
“O filho das classes
populares é condenado a reproduzir a falta de aptidão dos pais, reproduzida
secularmente por práticas ativas de exclusão, exploração, humilhação e
abandono. Por conta disso, muitos dos filhos dessas classes, aos 5 anos de
idade, já entram na escola como perdedores, condenados ao analfabetismo
funcional e, depois, ao trabalho semiqualificado e desqualificado” (p.122).
“O tempo livre para o
estudo apenas aprofunda o privilégio e a desigualdade de ponto de partida.
Sabendo de tudo isso, achar que seu privilégio é ‘merecido’ ou ‘meritocrático’
é muita cara de pau, não é mesmo, caro leitor e cara leitora? Mas é isso que
acontece todos os dias em todos os lugares” (p.122).
“No Brasil, enfim,
nunca tivemos uma luta de classes de verdade, na qual os interesses das classes
populares tenham se feito valer como direito. O que sempre tivemos aqui foi uma
cruel e covarde opressão de classe, na qual qualquer tentativa de diminuir, por
pouco que fosse a abissal distância social redundou em golpes de Estado e em
estados de exceção” (p.1242).
O GOLPE DE 2016 E SUAS PRECONDIÇÕES: O
CAPITALISMO FINANCEIRO E O PAPEL DAS CLASSES MÉDIAS
“Na década de 1980, o
projeto da industrialização sem empresários industriais vai mostrar claramente
os seus limites, patenteando a incapacidade do país para promover um
desenvolvimento industrial com autonomia tecnológica [...]” (p.125).
“O raciocínio de curto
prazo da elite brasileira sempre boicotou qualquer tentativa de construção de uma
base industrial e tecnológica autônoma” (p.125).
“No governo Geisel, o
II Plano Nacional de Desenvolvimento previa uma reestruturação profunda do
setor industrial e planejamento de longo prazo, mas foi boicotado pela elite
empresarial, avessa à presença estatal no comando do esforço [...] Mais uma vez
a classe média sairá às ruas, na campanha das Diretas Já, imaginando-se
protagonista quando na verdade cumpria um roteiro traçado de antemão pela
elite” (p.125).
“A década de 1990, no
Brasil, é marcada pela consolidação do capitalismo Financeiro [...] Essa
concepção de mundo, construída a partir de 1945, era alicerçada num compromisso
de classes que implicava a participação dos trabalhadores nos ganhos de
produtividade” (p.126).
“A questão deixa de ser
a mera participação nos lucros do capitalismo para a maioria da população.
Agora, o que estava em jogo era a tomada do poder político e social a fim de
reformá-lo a partir de dentro” (p.126).
“Agora, os capitalistas
viam-se diante de algo novo e verdadeiramente revolucionário, um movimento cujo
suporte social eram seus próprios filhos bem-educados. O objetivo da revolução
expressivista era redefinir os fins da vida social e modificar por dentro o uso
do poder” (p.127).
“A produtividade tem de
ser um meio para a felicidade individual e coletiva, e não o fim de toda a
organização social” (p.127).
”Mesmo no Brasil, onde
não estavam presentes várias das precondições sociais europeias, o ano de 1968
assinala o início de forte oposição ao regime militar, com grande peso
estudantil e da classe média mais crítica, como se viu no caso da Passeata dos
Cem Mil e de uma série de protestos que tiveram comoresposta o Ato
Institucional no 5 e o endurecimento do regime” (p.127).
“Assim, na década de
1980, mas sobretudo nas décadas seguintes, uma nova onda perpassa todas as
sociedades capitalistas no sentido de redefinir a produtividade e a acumulação
infinita de capital nos termos da revolução expressivista” (p.128).
“No Brasil, o “menino
de ouro” do capitalismo financeiro vai ser Fernando Henrique Cardoso. Como o
leitor e a leitora irá lembrar, FHC é o terceiro nome da “santíssima trindade”
do liberalismo conservador brasileiro, ao lado de Sérgio Buarque de Holanda e
Raymundo Faoro [...] É com ele que se completa o longo processo que começa na
Revolução de 30 erepresenta a vingança da elite então derrotada” (p.129-130).
“No governo FHC, a taxa
SELIC chega ao patamar recorde de 45%[...] Isso sem contar a forte suspeita de
estudiosos de que dívidas prescritas tenham sido fraudulentamente inscritas no
cadastro da dívida pública [...] Paralelamente, a alta classe média,
aproveitando o câmbio anti-industrial, volta a consumir produtos importados
baratos, como na República Velha” (p.130).
“FHC desmonta o Estado
e promove a transferência de recursos, via mercado e Estado, do povo para a
elite, ‘tirando onda’ de campeão das minorias oprimidas e defensor abstrato, já
que sem recursos ou políticas públicas, dos direitos humanos” (p.130-131).
“A armadilha aqui é a
substituição de questões clássicas e seculares, como a defesa dos trabalhadores
e das classes populares – por meio da redistribuição de riqueza econômica e
poder social – pela nova agenda do capitalismo financeiro” (p.131).
“O PT nasce, portanto,
como mais um partido do moralismo postiço da elite e se torna o partido da
‘moralidade na política’, atraindo assim setores de classe média e dos
sindicatos organizados” (p.135).
“A maioria acha que bas
ta ter um projeto econômico alternativo e mais inclusivo que, espontânea ou
magicamente, as pessoas vão compreender seu significado e seu benefício. Não se
percebe a importância crucial de elaborar uma narrativa, ou seja, um projeto
articulado alternativo ao elitista” (p.135).
“A inexistência desse
projeto alternativo impossibilita um ataque ao núcleo do rentismo e da
expropriação elitista, como corajosamente procurou fazer a ex presidenta Dilma.
Na falta de um projeto articulado e de uma TV pública com conteúdo plural, a
presidenta viu-se forçada a deixar que a Rede Globo, braço midiático do próprio
rentismo, explicasse a luta política à população nos seus próprios termos”
(p.135).
“Nesse contexto, a
questão real não é por que houve o golpe, e sim por que ele não aconteceu
antes. Foi essa fragilidade simbólica que facilitou o golpe de 2016. O moralismo
postiço da Rede Globo e da Lava Jato campeou praticamente sem oposição
discursiva e articulada que pudesse denunciar a trama no seu nascedouro”
(p.136).
“Como as causas reais
do empobrecimento não são compreensíveis – aqui a mídia cumpre seu papel mais
canalha –, o protesto assume a forma da violenta rejeição ao pacto democrático
e seus pressupostos humanitários, percebidos como a causa de todo mal” (p.136).
“Uma parcela da massa
da classe média, ao contrário, se engajou numa crítica ao processo de golpe, e
muitos se arrependem de terem se deixado usar pela manipulação midiática”
(p.138).
“Esse quadro mostra
quanto a classe média é diversificada e possui dentro de si todas as gradações
de sensibilidade política e social. Um sintoma da abrangência dessas colorações
possíveis é a preferência muitas vezes dividida entre Bolsonaro e Lula,
refletindo a nova divisão do país como um todo” (p.138).
“Desse modo, saber quem
somos de verdade é o primeiro passo para retomar um caminho que foi construído
por gente e, portanto, pode ser refeito por gente. Nesse sentido, a classe
média e suas frações têm um poder inédito entre nós. Para onde elas se
inclinarem, toda a sociedade, muito provavelmente, também vai se inclinar”
(p.141).
“Mas, por outro lado, a
massa da classe média tem a possibilidade de ser, num país tão desigual e com
classes populares tão perseguidas e desmobilizadas, um importante vetor de
mudanças sociais, como foi no passado” (p.141-142).
TRAJETÓRIAS DE VIDA
A alta classe média
SÉRGIO: O CEU DE UM BANCO EXPLICA COMO
SE COMPRA O MUNDO
“Sérgio não é um CEO
qualquer. Muito inteligente, culto, leitor de psicanálise nas horas vagas [...]
Sérgio tinha plena consciência de quem era e do que fazia” (p.144).
“Desde a adolescência,
ele era grande amigo de João Carlos. Filho de banqueiros, havia acumulado
fortuna própria na década de 1990, durante o governo de FHC, administrando
fundos de investimento estrangeiros [...] Lucrou tanto se utilizando do
dinheiro alheio que fundou o próprio banco” (p.145).
“Nessa época, Sérgio
frequentava uma faculdade de Direito nos Estados Unidos. Depois passou um ano
em Londres, estudando finanças e ciência política e, por indicação de amigos do
pai, estagiando num escritório que lidava com o mercado financeiro” (p.145).
“No início dos anos
2000 [...] era um multimilionário por ‘esforço próprio’ e apenas naquele ano
tinha ganhado mais dinheiro do que o pai durante toda a vida [...] Hoje o
departamento jurídico é o centro nervoso do banco, com tudo passando pelas mãos
de Sérgio, e ocupa um andar inteiro de um prédio moderno, decorado com luxo e
bom gosto” (p.145).
ANTÔNIO: O GERENTE DA CADEIA DE LOJAS E
A LUTA DE CLASSES NA CLASSE MÉDIA
“Antônio Bianchi é
gerente-geral de uma cadeia de lojas de roupas femininas com sede em São Paulo.
A cadeia possui 12 filiais em oito das maiores cidades brasileiras [...] Lúcia
Amaulfi é gerente de um dos departamentos da matriz em São Paulo” (p.155-156).
“Por meio de Lúcia foi
possível reconstruir tanto o estilo de gerência de Antônio como a forma pela
qual ela, típica representante da massa da classe média, reage a uma relação de
trabalho abusiva” (p.156).
“O cargo de direção de
Bianchi foi conseguido por intermédio das relações familiares de sua mulher,
parente próxima dos proprietários da rede de lojas, uma típica empresa familiar
que logrou crescimento expressivo a partir do ano 2000. Bianchi, como gosta de
enfatizar, é quem chega primeiro e quem sai por último na sede administrativa”
(p.156).
“O que acredito é no trabalho. Por conta disso, faço questão de ter uma
relação próxima com meus funcionários, eles precisam saber que podem contar
comigo e também conto com eles” (p.156).
“Quem é o grande
inimigo do Brasil?” (p.157).
“O PT quase acabou com o Brasil. A crise que vivemos agora é a herança
que esse pessoal deixou” (p.157).
“Lúcia me mostrou
alguns desses e-mails. Neles Bianchi diz estar pensando no futuro dos próprios
funcionários ao pedir que fossem à rua. Lula, por exemplo, devia ser preso para
mostrar que existe lei no Brasil. O futuro do Brasil dependeria disso. E não
são apenas e-mails” (p.158).
“Quando o STF negou o
habeas corpus a Lula, Bianchi fez festa na empresa e em casa. Abriu garrafas de
espumante Freixenet para os funcionários e cada um tomou uma pequena taça”
(p.158).
“Mas a festa de arromba
foi em sua casa, à noite. Todos os diretores e gerentes foram convidados e
comentaram depois. No dia seguinte, foi
a primeira vez que o vi chegar tarde ao trabalho’, conta Lúcia” (p.158).
“Sergio Moro é outro
ícone de Bianchi. Para ele, Moro é destemido e tem coragem de enfrentar os
poderosos. Quando perguntado acerca de quem são esses ‘poderosos’, Bianchi não
titubeia: ‘Lula, José Dirceu e Eduardo Cunha são os chefes das quadrilhas mais
importantes do Brasil.’ E Moro conseguiu ‘botar todo mundo na cadeia’. ‘Isso
não é para qualquer um.’ ” (p.161).
A FAMÍLIA PRADO
“O ambiente
descontraído leva as pessoas a revelarem mais o que efetivamente sentem e a
esconder menos as opiniões que consideram controversas [...] Afinal, não
controlamos nosso comportamento tanto quanto nossas declarações e temos pouca
consciência da forma como os outros nos percebem” (p.162-163).
“Discreto, afável e
muito bem-educado, Luiz Prado é um engenheiro de minas muito bem-sucedido, com
uma pequena empresa, da qual é o único funcionário, que presta assessoria a
empresas internacionais interessadas na prospecção de pedras preciosas no
Brasil [...] Em 2011, um ano especialmente bom para seus negócios, Luiz chegou
a ganhar 2 milhões de reais” (p.163).
“Sua mulher, Bibiana,
também tem carreira de sucesso, como advogada de um grande escritório de São
Paulo. Assim como Luiz, ela herdou a profissão. O pai era advogado conhecido,
professor de universidade de renome e dono de uma banca respeitável. Os quatro
filhos seguiram a carreira e, com exceção dela, todos trabalham no escritório
deixado pelo pai, hoje aposentado e com 91 anos” (p.163).
RENATA E ROBERTO: A CLASSE MÉDIA DE OSLO
“Renata Berger e
Roberto Gouveia moram no Rio de Janeiro, num belo apartamento com uma vista
espetacular para a lagoa Rodrigo de Freitas. Ali fui recebido pelo casal num
final de tarde de sábado, e o entardecer foi belíssimo” (p.168).
“Roberto é carioca,
torcedor fanático do Fluminense e cirurgião-plástico. Renata é gaúcha e, apesar
de morar na capital carioca há muito, guarda intacto o sotaque gaúcho” (p.168).
“Renata é estilista de
moda, tem parceria com uma loja on-line, para a qual desenha as roupas, além de
escrever para uma conhecida revista feminina. É entusiasta do empreendedorismo
sustentável” (p.168).
“As roupas que Renata
desenha são comercializadas on-line e confeccionadas com material reciclado e upcycled, como redes de pescadores e
malhas descartadas, submetidos a processos de tingimento que usam menos água e
geram menos desperdício” (p.169).
“O mais legal disso tudo é que consigo criar uma nova história para um
material que estava destinado ao lixo e a causar danos ao meio ambiente”
(p.169).
“Como editora de moda,
as reportagens de Renata têm sempre este perfil de aliar a moda ao espírito
ecológico e à defesa da expressão artística de comunidades ameaçadas. Mas
Renata é uma espécie de faz-tudo na revista e também entrou na seara do
feminismo de autoajuda” (p.172).
“O Roberto não tem paciência para sair comigo e com minhas amigas do
trabalho, prefere jogar tênis e tomar uísque com os amigos. Cada um tem que ter
seu espaço, e a maior parte das reclamações das minhas leitoras tem a ver com
coisas assim, em exigir demais da outra pessoa e do relacionamento”
(p.172).
CAIO: O GERENTE DE FAZENDA
“Atualmente, Caio
administra uma grande empresa rural, com várias fazendas no Triângulo Mineiro e
nos estados de São Paulo e Mato Grosso do Sul. Ele mora numa delas, uma fazenda
de criação de gado e cavalos de raça perto da cidade de Uberaba. Para” (p.173).
“Os filhos e a mulher
de Caio, além de alguns amigos, estavam bebendo cerveja e uísque puro malte.
Assim que chegamos, a mulher nos cumprimentou e logo se retirou para dentro da
casa” (p.173).
“Entendi então que,
para Caio, qualquer imposto é um abuso e que ele se sentia espoliado pelo
Estado” (p.176).
“Na visão de mundo de
Caio, o Estado é um agente da corrupção que espolia quem trabalha. Ao indagar
se apoiava a Lava Jato, Caio disse que sim, que Sergio Moro e Bolsonaro eram os
maiores e mais corajosos brasileiros” (p.176).
ANÁLISE DAS ENTREVISTAS DA ALTA CLASSE
MÉDIA
“A alta classe média,
ou seja, a camada superior da classe média, que combina porções razoáveis de todos
os capitais importantes [...]é uma fração de classe decisiva para o capitalismo
financeiro hoje dominante” (p.176).
“O caso de Bianchi é
paradigmático. Todo seu orgulho advém da imagem que tem de si mesmo como um
gestor humano’, genuinamente preocupado com seus colaboradores no contexto de
uma gestão compartilhada e solidária [...] A confusão dessas duas dimensões,
moralidade e cinismo, até mesmo no próprio Bianchi, é inseparável de seu
sucesso” (p.178).
“Lúcia é a incorporação
perfeita da luta de classes no âmbito da própria classe média, entre a alta
classe média – representada por Bianchi – e a massa da classe média –
representada por ela mesma –, que se incumbe das funções intermediárias de
supervisão e controle” (p.178).
“Pela trajetória
familiar, Lúcia se inclui na massa da classe média mais crítica e de esquerda.
Filha de posseiros expulsos por grileiros poderosos do Paraná, Lúcia sabe de
quem é filha e tem orgulho da luta dos pais” (p.179).
“O ‘safanão’ que a
mulher de Caio leva ao esconder a chave do carro e o ridículo a que foi exposta
demonstram quanto ainda é aceitável no seu meio este tipo de tratamento social
humilhante para a mulher. E Caio ainda apoia Sergio Moro e Bolsonaro como
figuras éticas que enfrentam a corrupção” (p.180).
“Seja na esfera estatal, seja na esfera do
mercado – rural no caso de Caio e urbano no de Bianchi –, todos têm na
“desfaçatez” de classe, como diria Machado, ou na cara de pau do moralismo
postiço, como prefiro, sua marca mais Nítida” (p.180).
“Ao contrário de Caio e
Bianchi, que ainda recorrem ao moralismo de fachada, Sérgio não recorre a
nenhuma dimensão moral. [...] Para Sérgio, o que faz é apenas se adaptar ao
mundo do dinheiro, o qual não foi inventado por ele. Ao comprar as pessoas,
está somente seguindo as regras desse mundo” (p.181).
“Sérgio é a mais
perfeita comprovação da gênese histórica das relações de classe e poder entre
nós como expusemos na segunda parte deste livro. A corrupção visada pelo
moralismo de fachada, da qual Sergio Moro é o grande campeão, serve apenas para
encobrir e tornar invisível a corrupção real” (p.181).
“Essa leitura
interpreta a ética da dignidade, ou seja, do trabalho útil para a sociedade,
universalizável, como indissociável da ética da sensibilidade. A
universalização de direitos para todos os trabalhadores não se contrapõe à luta
pela expressão da singularidade individual” (p.183).
“Como o capitalismo
financeiro destruiu esse potencial de aprendizagem individual e coletiva?
Primeiro, separando as questões da dignidade universalizável do trabalho útil
daquelas atinentes ao expressivismo, ou seja, do esforço individual de
autoconhecimento e das formas de vida decorrentes desse conhecimento” (p.183).
“Desde que não se
queira redistribuir riqueza ou poder, tudo pode ser aceitável pelo capitalismo
financeiro, que em seguida ainda se vende como emancipatório e justo. Na
verdade, as lutas por redistribuição e pela diversidade estão intimamente
ligadas” (p.184).
“As descobertas morais
e cognitivas, que deveriam levar a um aprofundamento da experiência humana,
foram transformadas em mercadoria para debilitar a crítica de um mundo social
injusto e irracional e, além disso, proporcionar lucros com a colonização da
dimensão moral das pessoas” (p.184).
“A família Prado, por
sua vez, mostra que situações concretas de injustiça podem produzir
aprendizados possíveis mesmo na alta classe média. A experiência de Bibiana,
baseada em sua participação em processos da Lava Jato, a fez compreender e
aprofundar uma atitude de crítica social rara na sua classe de origem” (p.185).
A MASSA DA CLASSE MÉDIA
RONALDO: PUBLICITÁRIO NO RIO DE
JANEIRO
“Ronaldo é funcionário
de um grupo de publicidade com sede em Barcelona e agências em várias cidades
brasileiras, entre as quais Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro”
(p.187).
“O que mais chama
atenção na agência é que mais parece uma residência acolhedora, com poltronas
para as pessoas se aninharem, cozinha e uma sala com mesas nas quais os
computadores da Apple são os únicos acessórios que indicam se tratar de um
local de trabalho” (p.187).
“A ideologia da empresa
era a de que todos formavam uma família e que o trabalho eficiente tinha de ser
criativo e divertido. Ronaldo fala com evidente orgulho do bom relacionamento
entre ele e os colegas de trabalho e de moradia. E não lhe parece problemático
o prolongamento do ambiente de serviço em casa e fora dos horários de
expediente” (p.188).
INÁCIO: CORRETOR IMOBILIÁRIO QUE VIROU
MOTORISTA DE CARROS DE LUXO
“Partidário fervoroso
de Jair Bolsonaro, Inácio acredita que as pessoas devem se armar para se
defender de bandidos, em especial as mulheres, que correm o risco de estupro.
Para Inácio, todos os políticos são corruptos” (p.191).
“Por conta disso, vota
apenas em candidatos que já são ricos, pois supostamente não precisariam roubar
do Estado [...]Mas a crença mais surrealista de Inácio é a de que sabe onde
Lula teria escondido os milhões supostamente desviados da Petrobras” (p.191).
“Na opinião de Inácio,
a política acabou com o Rio de Janeiro. O velho e surrado patrimonialismo
continua sendo o mais perfeito bode expiatório para a rapina do mercado por
seus donos, que permanecem invisíveis” (p.192).
“Para Inácio, Bolsonaro
seria uma espécie de Sergio Moro com um fuzil na mão. É, aliás, incrível a
contiguidade entre esses dois personagens no imaginário social de várias
pessoas de perfil mais conservador que entrevistei” (p.194).
WILLIAM: O ENGENHEIRO QUE VIROU
MOTORISTA DA UBER
“Conheci William como
motorista do Uber no Rio de Janeiro. Ele me conta que foi engenheiro da
Petrobras e, com a crise na empresa, acabou sendo dispensados com vários
outros” (p.195).
“Quando vou poder trabalhar de novo como engenheiro? Minha revolta é
grande. Mas existem milhares de pessoas na mesma situação que eu. Ou ainda
muito pior. O Rio de Janeiro está na miséria. Não tem emprego para ninguém. A
violência está por todo lado e todo mundo tem medo de sair nas ruas. É cada vez mais raro ver um carro da
polícia”
(p.197).
MIRTES: A APOSENTADA QUE FOI ÀS RUAS E
SE ARREPENDEU
“Mirtes é viúva desde
os 50 anos e hoje tem 63. Contou-me que chegou a ir a alguns bailes para
pessoas mais idosas, mas odiou a forma como os homens abordavam as mulheres
nesses lugares” (p.198).
“Mirtes me mostrou
fotos das manifestações de que participou em Porto Alegre, com a família e os
amigos, contra o PT e a corrupção [...] Em todas as fotos, está vestida com a
camisa da seleção e bandagem na testa, com palavras de apoio a Sergio
Moro, sorriso aberto, abraçada com as
amigas [...]” (p.199).
“Eu confesso que, entre 2013 e 2016, minha vida mudou inteiramente.
Pela primeira vez senti que fazia diferença para a vida do Brasil como um todo.
Sou muito ligada à família, e íamos juntos às manifestações, todos vestidos com
a camisa da seleção” (p.199).
“Minha maior tristeza é a sensação de ter sido enganada. A corrupção só
fez aumentar desde então e ninguém mais vai para a cadeia. Eu realmente pensava
que o PT era uma organização de criminosos, e o Lula, um mafioso, o líder deles
[...] Mas hoje vejo pelo trabalho do meu filho que as coisas não eram bem assim”
(p.200).
“Isso mostra que tinha coisas boas também com o PT e isso tudo acabou
Minha aposentadoria é pequena e minhas três casinhas, que meu marido me deixou,
são difíceis de alugar. Ninguém tem mais dinheiro. Baixei o aluguel de todas,
mas ainda assim é difícil conseguir alugar” (p.200).
LÍDIA: COMO SE TODO TIPO DE RACISMO
FOSSE UMA COISA SÓ
“Lídia é negra e nasceu
numa família pobre da periferia de Natal, no Rio Grande do Norte. O pai,
mulato, era militar; a mãe, negra e neta de escravos, trabalhava como empregada doméstica. Lídia é a sexta de oito
irmãos” (p.203).
“Na lembrança de Lídia,
era como se o racismo penetrasse em tudo e contaminasse tudo naquela casa. Como
se o racismo estivesse antes de tudo o que se pensa, antes mesmo do disparo de
qualquer sinapse no cérebro” (p.203).
“Um militar
nacionalista que depois seria perseguido pela ditadura, o pai protegia Lídia e
as outras filhas mais que os filhos. Apesar de conservador nos costumes, ele
insistiu na educação delas, a fim de que “nunca precisassem de um homem para
sobreviver” (p.204).
“A infância atribulada
de Lídia a convenceu de que seu único caminho para sobreviver eram os estudos,
aos quais passou a dedicar todo o tempo livre. Na escola pública, foi alvo do
mesmo racismo que conhecia em casa. Decidida a ser a melhor aluna, Lídia logo
começou a se destacar” (p.204).
“Lídia continuou
tirando as melhores notas. E passou em primeiro lugar no vestibular para o
curso de engenharia zootécnica numa universidade federal. Com isso, conseguiu
uma vaga no dormitório dos estudantes e passou a vender doces com uma amiga
para se alimentar no refeitório universitário” (p.205).
“Pela primeira vez não
me senti explorada por ninguém. Pelo contrário, passei a ser valorizada. Não
havia reflexão ou debate sobre racismo ou política, eram simplesmente pessoas
que respeitavam os outros” (p.206).
“Graças ao
extraordinário esforço pessoal, Lídia conseguiu entrar para oquadro técnico de
uma grande empresa estrangeira do ramo farmacêutico. Mas também ali, no começo
pelo menos, sentiu a mesma exploração e a mesma sensação de não ter voz”
(p.207).
“Nos últimos anos, as
coisas mudaram para melhor. Entrou no comitê de gênero e raça da empresa, o que
a motivou a ler e aprender mais sobre o assunto” (p.207).
GISÁLIO: A VITÓRIA SOBRE A POBREZA
“Nascido numa família
pobre, Gisálio tem 31 anos e é professor da rede pública de ensino em Brasília”
(p.208).
“Gisálio teve uma
infância de baixa classe média, sem luxos, mas sem necessidades. A família
comia, por exemplo, carne todos os dias, ainda que quase sempre carne de
segunda” (p.208).
“Na virada do século
XXI, os patrões perderam a concessão do cartório em São Paulo, e seus pais
passaram a enfrentar graves dificuldades financeiras. A família voltou a Novo
Horizonte, para viver de favor na casa dos pais de Angélica” (p.209).
“[...] Gisálio tinha
vergonha do pai e da nova situação familiar. Além disso, a escola pública de
Novo Horizonte era muito fraca e não preparava ninguém adequadamente. Ele
relata que vários amigos da época caíram na criminalidade e acabaram presos”
(p.209-210).
“Mas foi no cursinho
particular em Novo Horizonte, pago com esforço pelos pais, que se manifestou o
resultado concreto do estímulo ao estudo semeado pelos pais em meio a tantas
dificuldades [...] O professor de história lhe apresentou Marx, Gramsci e
historiadores marxistas ingleses para interpretar o capitalismo e sua formação”
(p.210).
“Gisálio descobriu
então uma inclinação política que nunca mais irá abandonar. Decidiu-se pelo
magistério, a fim de fazer com outros jovens o que aqueles professores haviam
lhe proporcionado, abrindo os seus olhos para o mundo” (p.210).
“Enquanto estudava, se
engajou no PT de Araraquara, participando ativamente das campanhas políticas do
período. Antes de tudo, queria que mais jovens tivessem a mesma oportunidade
que ele, e não a vida sem futuro e sem esperança que havia conhecido na escola
pública” (p.211).
“Agora o filho estava
fazendo mestrado em pedagogia na recém-inaugurada USP Leste. Na universidade,
Gisálio conheceu Aurora, professora no Distrito Federal, que também fazia
mestrado. Os dois se casaram e hoje dão aulas na rede pública do DF [...]”
(p.211).
ANÁLISE DAS ENTREVISTAS DA MASSA DA
CLASSE MÉDIA
“Na massa da classe
média, as visões de mundo tendem a ser mais diversificadas, multifacetadas e
polarizadas do que na alta classe média” (p.212).
“Nesse segmento social,
tende a ser maior a distância entre o discurso do capitalismo financeiro e a
vida prática das pessoas. Se na alta classe média vimos a confluência de vários
tipos de capital [...] a situação é bem diferente na massa da classe média”
(p.213).
“No princípio, Ronaldo
tinha prazer com as viagens a trabalho. O estágio em Barcelona foi muito
compensador e divertido. Mas a constância dos deslocamentos, sobre os quais não
tem controle, o impede até mesmo de manter relacionamentos duradouros” (p.213).
“A própria residência
de Ronaldo é extensão do trabalho. Ele mora com colegas da agência, justamente
para ficar mais perto da empresa, e obviamente o trabalho é o assunto
dominante” (p.214).
“Os casos de Inácio e
William são também paradigmáticos para a massa da classe média brasileira. A
trajetória de vida descendente de Inácio, que perde um emprego bom e lucrativo
e tem de se adaptar a uma ocupação com menos status relativo e um terço dos
ganhos anteriores, o deixa ressentido e frustrado” (p.214-215).
“Como sempre, o ódio e
o desprezo ao povo, materializados na estigmatização da soberania popular
travestida de populismo pelo ataque midiático, são acobertados com o véu do
ódio seletivo à política, desde que esta tenha alguma vinculação com os
interesses populares” (p.215).
“Desse modo, o ódio que
Inácio volta aos políticos e à política serve de cobertura e racionalização,
protegendo a sua autoestima” (p.215).
“Portanto, na massa da
classe média, é o medo objetivo da proletarização que funciona como deflagrador
de todas as crenças antipopulares” (p.216).
“No caso de Inácio, bem
como no de William, a predileção por Bolsonaro advém do mesmo motivo: a
necessidade de limpeza total da política. Em William, a agressividade é menor.
Apesar de considerar Bolsonaro o único antídoto à crise moral do país, ele não é
tão tosco e primitivo quanto Inácio” (p.217).
“Já o caso de Mirtes
mostra a reação de uma camada mais estabelecida da massa da classe média.
Também ela possui os preconceitos de classe típicos de seu estrato social. Os
pobres estão aí para servir como os escravos serviam [...]” (p.218).
“Mirtes se decepcionou
com o moralismo de fachada da Rede Globo e da Lava Jato. Mas não cai na
armadilha de procurar um herói vingador, que iria por fim limpar o país. Ao
contrário, percebe que foi enganada” (p.9.
“São poucos os que
alcançam isso, vencendo resistências em na família e os sentimentos de inveja e
despeito dos mais próximos, além do racismo de classe e de raça mais cruéis. A
grande maioria sucumbe à pressão familiar e social para que se mantenham
subjugados e impotentes” (p.220).
“Alguns dos que
conseguem, no entanto, desenvolvem uma percepção do mundo social antagônica à
de seus colegas da classe média estabelecida. Para Lídia, Lula é ela. O
sofrimento do ex-presidente, preso sem provas e injustamente, é a expressão do
mesmo sofrimento que ela teve de aturar calada a vida toda” (p.220).
“De qualquer modo, comprova-se assim a
importância equivalente tanto do ponto de partida de classe como da trajetória
específica a cada indivíduo ao subir ou descer na escala social” (p.221).
CONCLUSÃO: A CLASSE MÉDIA EM TEMPOS DE
CAPITALISMO FINANCEIRO
“Este estudo sobre a
classe média brasileira nos levou a uma reconstrução histórica tanto da
moralidade da classe em geral quanto de sua gênese especificamente brasileira”
(p.222).
“A atenção aos
elementos universais é o que, afinal, nos mostra que não existem diferenças
relevantes na forma pela qual a classe média constrói seus privilégios nas
sociedades modernas. Tais privilégios sempre se baseiam na apropriação do
capital cultural mais valorizado e prestigioso – e isto não é como a
jabuticaba, algo que existe só no Brasil” (p.222).
“Vimos que o
capitalismo financeiro cria não só uma forma específica de acumulação de
capital, com ritmo e lógica peculiares, mas também uma semântica, uma concepção
de felicidade e uma narrativa nova para o mundo social” (p.224).
“Toda a riqueza não estaria concentrando-se
cada vez mais nas mãos do 1% mais rico se a inteligência coletiva não tivesse
sido sequestrada e rebaixada” (p.224).
“Se hoje em dia metade
das empresas brasileiras e a maior parte da população está endividada até o
pescoço, isso não provoca reação nem rebelião organizada nas pessoas” (p.225).
“Todo o mecanismo de
comercialização, precisamente concebido para atender aos desejos e necessidades
de cada um, é produzido por nós mesmos com nossas ‘curtidas’, sem qualquer
custo para a plataforma comercial” (p.225).
“Por conta disso, a
doença de nosso tempo – cada época tem a sua doença característica – é a
depressão ou o esgotamento. Como a agressividade e o ressentimento pela vida
incompleta voltam-se agora contra o próprio indivíduo [...]” (p.226).
“Todas as suas escolhas
e opiniões são presididas pela semântica expressiva travestida de marketing em
seu ramo de atividade” (p.229).
“O capitalismo
financeiro mudou o sentido da liberdade e da autonomia individual como forma de
aumentar a margem dos proprietários no excedente social global” (p.230).
“Como a classe média se
distingue pela relação que entretém com a elite acima e com as classes
populares, temos que esclarecer sua posição, primeiro examinando essa elite que
não só despreza o próprio país como o vê como fonte de riquezas a serem
saqueadas no curto prazo” (p.230).
“A massa da classe
média é explorada de modo racional e irracional. Como seu privilégio de classe
decorre do acesso restrito a um conhecimento comparativamente mais valorizado
que o das classes populares, o sentimento antipopular da elite e da alta classe
média procura ao máximo manipular o temor da massa da classe média de perder
seus privilégios” (p.237).
“Este livro se encerra
antes das dramáticas eleições de 2018. Como as causas reais do empobrecimento
do país, que vimos ao longo do livro, são tornadas invisíveis, o ódio cego
tomou conta de grande parte da classe média e de setores populares. Jair
Bolsonaro surfa nessa onda de ódio e violência irrefletidos” (p.237).
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